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A força evangelizadora da piedade popular
122. Da mesma forma, podemos pensar que
os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho,
são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização.
Assim é, porque cada povo é o criador da
sua cultura e o protagonista da sua história. A
cultura é algo de dinâmico, que um povo recria
constantemente, e cada geração transmite
à seguinte um conjunto de atitudes relativas às
diversas situações existenciais, que esta
nova geração deve reelaborar face aos próprios
desafios. O ser humano «é simultaneamente
filho e pai da cultura onde está inserido».
Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo
de transmissão cultural também transmite
a fé de maneira sempre nova; daí a importância
da evangelização entendida como inculturação.
Cada porção do povo de Deus, ao traduzir
na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria,
dá testemunho da fé recebida e enriquece-a
com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo».
Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira
expressão da actividade missionária espontânea
do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente
desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito
Santo.
123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade
em que a fé recebida se encarnou numa cultura e
continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança,
a piedade popular foi objecto de revalorização
nas décadas posteriores ao Concílio. Quem
deu um impulso decisivo nesta direcção,
foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular
«traduz em si uma certa sede de Deus, que somente
os pobres e os simples podem experimentar» e «torna
as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e
predispõe-nas para o sacrifício até
ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé».
Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América
Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro
da Igreja Católica» e que nela «aparece
a alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas
que o Espírito Santo explicita na piedade popular
por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente,
onde uma multidão imensa de cristãos exprime
a sua fé através da piedade popular, os
Bispos chamam-na também «espiritualidade
popular» ou «mística popular».
Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada
na cultura dos simples». Não é vazia
de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais
pela via simbólica do que pelo uso da razão
instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere
in Deum que o credere Deum. É «uma maneira
legítima de viver a fé, um modo de se sentir
parte da Igreja e uma forma de ser missionários»;
comporta a graça da missionariedade, do sair de
si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários
e o participar em outras manifestações da
piedade popular, levando também os filhos ou convidando
a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador».
Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força
missionária!
125. Para compreender esta necessidade, é preciso
abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não
procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade
afectiva que dá o amor é que podemos apreciar
a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos,
especialmente nos pobres. Penso na fé firme das
mães ao pé da cama do filho doente, que
se agarram a um terço ainda que não saibam
elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança
contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para
pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a
Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não
pode ver estas acções unicamente como uma
busca natural da divindade; são a manifestação
duma vida teologal animada pela acção do
Espírito Santo, que foi derramado em nossos corações
(cf. Rm 5, 5).
126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado,
subjaz uma força activamente evangelizadora que
não podemos subestimar: seria ignorar a obra do
Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados
a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar
o processo de inculturação, que é
uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade
popular têm muito que nos ensinar e, para quem as
sabe ler, são um lugar teológico a que devemos
prestar atenção particularmente na hora
de pensar a nova evangelização.
Papa Francisco, A Alegria do
Evangelho
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