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Homilia na Solenidade da Ascensão do Senhor,
Festa da vida e da família
Há uma ascensão a cumprir!
Amados irmãos, aqui estamos todos, dos mais novos
aos mais velhos, em plena Ascensão do Senhor, festa
da vida e da família. É bom revermo-nos
em número e proveniência tão expressivos,
num verdadeiro “dia diocesano”, em boa hora
dedicado a tal temática.
Revermo-nos uns aos outros, com especial referência
aos que perfazem datas maiores do seu matrimónio.
E revermo-nos nesta solenidade, assumido bem o que disse
a oração de há pouco, pedindo a Deus
a alegria plena que nos pode e deve dar a ascensão
de Cristo, causa de esperança para todos e cada
um. Na verdade, «tendo-nos precedido na glória
como nossa Cabeça, para aí nos chama como
membros do seu Corpo».
Detenhamo-nos um pouco neste ponto. E perguntemo-nos:
- Que horizonte existencial teríamos, que garantia
mais larga de vivermos e sobrevivermos, se a ascensão
de Cristo não nos iluminasse já? Somos cristãos,
porque sabemos da sua vitória sobre a morte; vivemos
e sobrevivemos, porque com Ele chegaremos não “onde”
mas “a Quem” Ele já chegou. No Espírito
de Cristo, o nosso destino eterno torna-se num progresso
filial, podendo dizer por adoção o que Ele
diz por geração: «Saí do Pai
e vim ao mundo; agora deixo o mundo e vou para o Pai»
(Jo 16, 28).
E não nos pareçam palavras estranhas e abstratas.
Para quem reza e vive o Pai Nosso, tudo isto é
muito existencial e concreto. Na vida, na família
e no correr do tempo, feito caminho e ascensão.
Caminho e ascensão para o Pai, que tanto é
“nosso” como “está nos céus”.
É uma “iluminação”, certamente.
A vida, morte, ressurreição e ascensão
de Cristo são uma grande luz que incide na nossa
vida, assim mesmo revista. Por isso pedia o Apóstolo,
na leitura que ouvimos: «O Deus de Nosso Senhor
Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito
de sabedoria e revelação para O conhecerdes
plenamente e ilumine os olhos do vosso coração,
para compreenderdes a esperança a que fostes chamados».
Pedido bem aceite por Deus, pois só assim se compreende
o estarmos nós aqui, dois milénios depois,
como todos os que nos precederam na esperança cristã.
Demos graças a Deus por um horizonte existencial
tão largo. E continuemos agora o que fizeram os
primeiros, como também ouvimos: «Jesus respondeu-lhes:
“Sereis minhas testemunhas em Jerusalém e
em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins
da Terra”».
Os “confins da Terra” são agora aqui
e onde a vida nos levar, como fronteira aberta. Não
tanto na geografia, como na companhia que realmente prestarmos
e seja a quem for. A caminhada sinodal de Lisboa, partilhando
com o Papa Francisco o “sonho missionário
de chegar a todos”, a isto mesmo se refere. Diante
de tantas vidas mal suportadas no corpo ou no espírito,
diante de famílias que dificilmente se podem constituir
ou sustentar, um cristão e os que se casam “em
Cristo” só podem ser testemunhas da esperança,
no horizonte infindo que a sua ressurreição
abriu e a ascensão culminou. Num arco completo
e na dimensão perfeita que, de Deus para Deus,
nos transporta a vida.
Esta convicção cristã corresponde
afinal à aspiração mais profunda
de ser e perdurar, que nos faz humanos e até divinos
– como o seremos com Cristo em Deus. Não
se alcança sozinho, é um dom de Deus, que
se define como amor, vida partilhada do Pai e do Filho
na união do Espírito. Sozinhos morremos,
com Cristo vivemos - porque convivemos, na vida na morte
e para além da morte, no próprio Deus da
vida.
Na recente exortação apostólica
pós-sinodal Amoris Laetitia, o Papa Francisco impele-nos
nesse mesmo sentido, com a urgência da atualidade
vivida e sofrida por tantas pessoas e famílias.
Verifica, também ele, que um individualismo encerrado
nos próprios desejos enfraquece e obvia qualquer
vinculação social, a começar pela
familiar: «No fundo, hoje é fácil
confundir a liberdade genuína com a ideia de que
cada um julga como lhe parece, como se, para além
dos indivíduos, não houvesse verdades, valores,
princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual
e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial
com um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba
por ser destruído pelas conveniências contingentes
ou pelos caprichos da sensibilidade» (AL, 34).
Creio que foi esta verificação que o levou
a convocar duas assembleias sinodais sobre a temática
familiar. Porque vê no vínculo conjugal a
base da própria solidariedade, que não se
sustentará sem ele. E, desmentindo liminarmente
que o enfraquecimento da família traga qualquer
benefício à sociedade, não deixa
de advertir «que só a união exclusiva
e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza
uma função social plena, por ser um compromisso
estável e tornar possível a fecundidade»
(AL, 52).
Daqui que toda a exortação vá no
sentido de reforçar a família como lugar
de geração e proteção da vida.
Para tal se constitui e para tal deve ser consciencializada
e apoiada, nunca para o contrário. É com
grande veemência que diz: «Não posso
deixar de afirmar que, se a família é o
santuário da vida, o lugar onde a vida é
gerada e cuidada, constitui uma contradição
lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada
e destruída» (AL, 83). Por isso mesmo insiste
na proteção da vida da conceção
à morte natural, no arco completo que tem e deve
ter: «A família protege a vida em todas as
fases da mesma, incluindo o seu ocaso. […] Da mesma
forma, a Igreja não só sente a urgência
de afirmar o direito à morte natural, evitando
o excesso terapêutico e a eutanásia, mas
também rejeita firmemente a pena de morte»
(AL, 83).
Família, lugar por excelência da vida e transmissora
essencial da cultura, enquanto visão e sentimento
das coisas. A prevalência da família, e concretamente
dos pais, no que respeita à educação
dos filhos é claríssima nas palavras do
Papa Francisco. Depois de lembrar que a educação
integral dos filhos é dever e direito insubstituível
dos pais, esclarece: «O Estado oferece um serviço
educativo de maneira subsidiária, acompanhando
a função não delegável dos
pais, que têm o direito de poder escolher livremente
o tipo de educação – acessível
e de qualidade – que querem dar aos seus filhos,
de acordo com as suas convicções»
(AL, 84).
Na nossa atualidade portuguesa, estas palavras são
de grande oportunidade. Também elas nos farão
“ascender” mais e melhor à verdade
das coisas e das práticas. O Estado é subsidiário
dos pais e das respetivas escolhas e iniciativas educativas,
num quadro geral de direitos humanos efetivamente respeitados.
E subsidiar implica atribuir às escolas não
estatais o justo financiamento que merecem, paritário
com o que o mesmo Estado presta às que diretamente
cria. Na verdade, esses pais são tão contribuintes
como os outros e também financiam as escolas estatais.
E estas últimas – que são de nós
todos – deverão atender ao que os pais pretendem
para os seus filhos, em termos de valores a transmitir.
Ao longo da exortação, o Papa Francisco
evidencia a família como lugar original e pedagogia
básica da vida e da convivência. Podemos
dizer que é o primeiro patamar duma vida em “ascensão”,
como o próprio Jesus humanamente a viveu, na família
de Belém e Nazaré.
Ascensão e comunhão vão a par, pois
não se ascende ao Deus Amor senão amando
e aprendendo a amar, a viver com os outros e para os outros,
familiarmente assim. Como o Papa enuncia, numa série
fundamental de verbos: «A família é
o âmbito da socialização primária,
porque é o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se
com o outro, a escutar, partilhar, suportar, respeitar,
ajudar, conviver. A tarefa educativa deve levar a sentir
o mundo e a sociedade como ambiente familiar: é
uma educação para saber habitar para lá
dos limites da própria casa» (AL, 276).
Encontro neste tópico “familiar” o
cerne da exortação papal: a família
sólida e protegida é a base insubstituível
dum mundo solidário. Religiosamente considerada,
é também o ponto de partida da ascensão
para Deus.
Consequentemente, o Papa Francisco dá-nos indicações
claras e precisas para a vida da Igreja, na sua relação
com as famílias. Na esteira dos seus predecessores,
insiste na integração eclesial de todos
os batizados, inclusive dos divorciados recasados, dizendo
em relação a estes que «a sua participação
pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais,
sendo necessário, por isso, discernir quais das
diferentes formas de exclusão atualmente praticadas
em âmbito litúrgico, pastoral, educativo
e institucional podem ser superadas» (AL, 299).
Ainda que não inclua nesta série de exclusões
a superar as de ordem sacramental, não dispensa
estes irmãos e irmãs da ascensão
para Deus, com tudo o que possa e deva ser.
Todavia, o que sobremaneira pretende é o que nós
havemos de procurar também: «Hoje, mais importante
do que uma pastoral dos falhanços é o esforço
pastoral para consolidar os matrimónios e assim
evitar roturas» (AL, 307).
O Papa chega mesmo a caraterizar o objetivo e o espírito
da ação matrimonial da Igreja em termos
de “vínculo”. Assim e perentoriamente:
«Tanto a pastoral pré-matrimonial como a
matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral
do vínculo, na qual se ofereçam elementos
que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os
momentos duros» (AL, 211). E, quase no fim da exortação:
«Em suma, a espiritualidade matrimonial é
uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor
divino» (AL, 315).
O Papa lembra também que «os Padres sinodais
insistiram no facto de que as famílias cristãs
são, pela graça do sacramento nupcial, os
sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo
o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias,
igrejas domésticas» (AL, 200). Conjugadamente
há de tomar-se a comunidade cristã como
autêntica e operativa «família de famílias»
(cf. AL, 202).
Com tudo isto, irmãos caríssimos, quase
podemos tomar como programa a “ascensão”
das famílias na vida da Igreja e da Igreja para
o mundo, a fim de que este se torne mais familiar também
– que o mesmo é dizer, ascenda igualmente
para Deus Amor. Da família à Igreja, da
Igreja ao mundo, e do mundo a Deus: assim teremos a ascensão
perfeita. Terminava o Evangelho de há pouco dizendo
que, depois da ascensão do Senhor, os discípulos
«voltaram para Jerusalém com grande alegria».
Assim regressemos nós hoje à diocese inteira,
reforçados na convicção e no ânimo,
em prol da família e da vida. Há, no Espírito
de Cristo, uma ascensão a cumprir!
Solenidade da Ascensão do Senhor,
8 de maio de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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