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- Programa Pastoral 2010-2011 -
A Palavra e o acontecimento
1. Sempre assim foi na História da Salvação.
O judeocristianismo não é uma religião
do livro ou do discurso. O que torna Deus presente e exigente
são as suas intervenções na vida
do seu Povo, que se tornam acontecimentos irrecusáveis,
envolventes e interpelantes; eles são uma revelação,
uma presença viva do Deus salvador. Muitas vezes
eles acontecem antes da Palavra, são eles que suscitam
a Palavra, com que os profetas traduzem, em linguagem
humana, o que Deus diz ao seu Povo, agindo para o salvar.
A própria Palavra identifica-se, então,
com o acontecimento, é acontecimento. Cada novo
acontecimento faz ouvir de novo a Palavra, já dita
ou escrita no passado. Ao ritmo do acontecimento, ela
torna-se actual, aplica-se ao momento presente, como Palavra
viva que Deus nos diz agora. Ela deixa de ser apenas discurso
e passa a ser interpelação vital, que nos
mergulha em Deus e muda a nossa vida. Foi assim que a
vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, sobretudo a sua morte
e ressurreição, levou os discípulos
e a Igreja primitiva a escutar de novo toda a Palavra
dos profetas e a captar-lhe a mensagem. À luz do
acontecimento da ressurreição, é
a própria Palavra de Jesus que é escutada
e acolhida de uma maneira nova. O acontecimento faz perceber
e acolher a Palavra.
A viagem do Santo Padre no seu conjunto, mas de um modo
muito especial, para nós, em Lisboa, afirmou-se
como um grande acontecimento, que nos surpreendeu, nos
envolveu, nos interpelou, convidou tantos a renovar o
coração e a transformar a vida. A sua passagem
no meio de nós não foi um conjunto de discursos,
foi Deus que nos visitou, foi a promessa de Cristo de
que ficaria connosco até ao fim, a cumprir-se,
através do ministério apostólico
do Sucessor de Pedro. Não foi Joseph Ratzinger
que nos visitou, foi o Papa, o primeiro dos Apóstolos,
o principal dos enviados. Disse-nos coisas que já
tinha dito outras vezes, que os seus antecessores tinham
dito, mesmo aquelas que a Escritura fixou por escrito.
Mas como as ouvimos com a frescura da novidade, com a
força interpelante do amor de Deus! Era o nosso
presente, o presente das nossas vidas, estávamos
a vivê-las. Mais uma vez, na nossa história
de salvação, o acontecimento revelou a Palavra.
A grande interpelação que este acontecimento,
em que nos sentimos visitados por Deus, deixa à
Igreja de Lisboa é esta: vamos continuar a ser
uma religião do livro e do discurso ou vamos mergulhar
nos acontecimentos da salvação? Vamos pressentir
a acção e a presença de Deus que
nos fala e nos salva, em cada Eucaristia que celebramos,
em cada expressão da caridade fraterna, em toda
a busca da verdade? A nossa Igreja deseja ser, sempre,
acontecimento de salvação, para os seus
membros e para todos os homens e mulheres, nossos irmãos?
O Santo Padre interpelou-nos, várias vezes, para
que a nossa vida seja testemunho, ou seja, acontecimento
de salvação e não apenas discurso.
A vida do cristão, no seio da sociedade, pode ser
acontecimento de salvação, só assim
será missão. No testemunho da fé,
da esperança e da caridade, numa palavra, no testemunho
da santidade, os cristãos podem anunciar as palavras
de sempre, mas se a sua vida for acontecimento, as suas
palavras serão escutadas e acolhidas com a surpresa
da actualidade, rasgarão caminhos de surpresa no
deserto, serão “luz para a vida”.
A Páscoa de Jesus é o acontecimento
definitivo
2. Se a visita do Santo Padre foi um acontecimento de
salvação, é porque ele nos ajudou
a reviver, a reencontrarmo-nos com a Palavra de Jesus.
Isso aconteceu na força interpelativa do seu ministério
apostólico, na Eucaristia que celebrou connosco,
na palavra que nos disse como grande profeta da Igreja.
Em cada momento palpava-se esta densidade de Cristo como
acontecimento decisivo de salvação. Centralidade
de Cristo e da Eucaristia, foram palavras suas a convidar-nos
a mergulhar, a viver a actualidade do grande acontecimento
da salvação.
Estes objectivos programáticos são mais
do que um programa; são um desafio que deve mobilizar
e entusiasmar todos os membros da Igreja, sobretudo aqueles
que já participam visivelmente na realização
da missão: dar, em tudo, para todos, agentes de
pastoral e destinatários da missão, actualidade
à Páscoa de Jesus. A Igreja, em cada uma
das suas expressões, sentir-se-á envolvida
por ele, como os crentes do Antigo Testamento se sentiram
envolvidos pela nuvem, sentir-se-á o seu Povo e
então adorará, anunciará, amará,
fará memória. Mergulhar no acontecimento
da salvação é sempre redescobrir
a vida com nova esperança e uma nova alegria de
viver, é escutar a Palavra e sentir, como se fosse
a primeira vez, que ela é Palavra de vida e para
a vida.
Toda a formação cristã e todo o anúncio
de salvação têm de ter esse ritmo:
mergulhar na “nuvem” que envolve o Deus presente,
ou seja, mergulhar em Cristo, a última e máxima
presença do Deus vivo a agir no meio do seu Povo.
Nessa “nuvem” podemos entrar como indivíduos
mas sairemos dela como comunidade de irmãos, porque
mergulhar na Páscoa de Jesus ensina-nos, faz-nos
descobrir, que a vida é comunhão, que viver
é amar e partilhar. A caridade é, então,
no dizer do Santo Padre, “um coração
que vê”, isto é, que identifica no
rosto do seu irmão, a maneira de o amar naquele
momento concreto da sua vida.
Escutar os anseios dos nossos irmãos
3. A caridade é um “coração
que vê”, mas também um coração
que escuta. Na medida em que mergulhar no acontecimento
da salvação, a Igreja escuta os gritos e
os anseios de todos os homens seus irmãos, porque
fica possuída pelo amor salvífico de Deus
em relação a toda a família humana.
A Igreja não está no mundo para o condenar,
mas para o salvar. O Santo Padre disse-nos: “as
expectativas mais profundas do mundo e as grandes certezas
do Evangelho cruzam-se na irrenunciável missão”.
Mergulhada no acontecimento da salvação,
a Igreja tem de escutar os clamores que brotam da procura
e do sofrimento dos homens, tem de identificar essas expectativas
profundas e fazer com que se cruzem com as respostas do
Evangelho. Só a Igreja pode anunciar o Evangelho
como resposta aos anseios e expectativas dos homens. Só
então ele será palavra de vida. Este é
o desafio de uma nova evangelização, que
não pode ser apenas o ensino programado de uma
doutrina, mas supõe um “novo ardor”,
no dizer de João Paulo II. Só esse novo
ardor, que supõe que quem anuncia mergulhou no
acontecimento pascal, revelará o modo e o momento
de apresentar o Evangelho como a resposta que os homens
nossos irmãos procuram. Desejo muito que, durante
este Ano Pastoral, a nossa Igreja de Lisboa não
viva uma religião do livro ou do discurso, mas
que mergulhe, cada dia mais profundamente, em Jesus Cristo,
o acontecimento definitivo da salvação,
e receba aí aquele ardor necessário para
uma “nova evangelização”.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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