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Paroquia de Santo Antonio dos Cavaleiros
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Recomeçar e reconstruir

 

Reflexão da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a sociedade portuguesa a reconstruir depois da pandemia Covid-19

1. Estamos a viver uma experiência inédita para as nossas gerações, mas que marcou muitas outras gerações ao longo da história. Esta mostra-nos que calamidades naturais com a dimensão da que hoje experimentamos produziram profundas transformações culturais, sociais, políticas e económicas. O trabalho de reconstrução que se sucedeu a essas calamidades naturais, mas também a outras que foram fruto da ação humana, como guerras de grande dimensão, pode colher as lições que delas se podem extrair e ser uma ocasião para começar de novo e repensar os alicerces em que assentava a sociedade onde essas calamidades se geraram. Os desafios que se colocam depois da pandemia Covid-19 são semelhantes: os de colher as lições que dessa pandemia podem retirar-se e de repensar as bases em que assentam as nossas sociedades, não desperdiçando o que elas têm de positivo e corrigindo as suas disfunções e injustiças. É um pequeno contributo nesse sentido que queremos dar com esta reflexão.

Num contexto excecional: não fazer da exceção regra

2. Importa salientar que essa tarefa de reconstruir as nossas sociedades em novos alicerces não poderá ser ditada por alguma forma de determinismo impulsionado pelas exigências colocadas pela necessidade de evitar novos surtos da pandemia. Há opções a tomar que devem ser orientadas por critérios éticos, para além dessas exigências.

3. Há que distinguir entre exigências de curto prazo e excecionais e o que são opções de mais vasto alcance.

Assim, por exemplo, algumas privações da liberdade individual e da privacidade, ou o fecho de fronteiras, poderão ser admissíveis num contexto excecional, mas não deverão tornar-se regra ou passar a ser encaradas com mais fácil tolerância.

Certas práticas aconselháveis num contexto de risco de novos surtos da pandemia, como o menor uso de transportes públicos e a redução de contacto presenciais ou de contactos sociais em geral, por exemplo, também não devem estender-se para além desse contexto excecional.

A solução de recurso do ensino à distância veio acentuar desigualdades, pois nem todas as famílias dispõem dos necessários meios informáticos, nem da capacidade de suprir funções que são próprias dos professores.

É bom que estejamos atentos a estas questões, para que não caiamos no erro de construir uma nova sociedade que destrói algo do que a anterior tinha de bom.

4. Mas também há aspetos a reter numa perspetiva de futuro, como verdadeira lição, da experiência excecional que temos vivido. Assim, por exemplo, o recurso mais frequente ao teletrabalho pode permitir uma mais fácil conciliação do trabalho com a vida familiar ou evitar deslocações com o inerente custo ecológico e económico. Esse custo ecológico e económico, incluindo o de viagens aéreas, também pode ser evitado com as mais frequentes comunicações e reuniões por via telemática. Até certo ponto e sem que os contactos presenciais deixem de ser, em várias situações, imprescindíveis, estes contactos têm-se revelado eficazes e a comunicação até se tem intensificado.

O valor inestimável de cada vida humana

5. Uma lição prioritária que da tragédia desta pandemia podemos colher é a do que ela representa como redescoberta do valor inestimável de cada vida humana. A opção com que todos os governos foram confrontados foi precisamente esta: que valor tem a vida humana e que sacrifícios estão as nossas sociedades dispostas a assumir para salvaguardar vidas humanas. E, sem que tal não tenha deixado de ser objeto de controvérsia, mais ou menos explícita, até em âmbitos políticos e académicos, a resposta foi a de que esse propósito de salvaguardar vidas humanas prevalecia sobre os maiores sacrifícios não só nos planos da liberdade e do bem-estar pessoal, mas, sobretudo, nos planos económico e social. O confinamento, com todas as limitações que acarretou, salvou, de facto, muitas vidas humanas no nosso país.

6. Entre nós, a primazia desse objetivo de salvar vidas humanas foi consensualmente aceite por pessoas de várias orientações e esse é um facto a registar positivamente. É natural, porém, que à medida que se forem sentindo com mais intensidade os efeitos da crise social e económica, surjam vozes a questionar a opção que foi tomada, talvez não tanto pela primazia que foi dada ao objetivo de salvaguardar vidas humanas, mas porque se questiona se não haveria alternativas menos gravosas. Importa nunca esquecer, mesmo quando a crise se intensificar, ou mesmo que se questione se não haveria alternativas menos gravosas, que a salvaguarda de vidas humanas permanece um objetivo prioritário que dá sentido aos sacrifícios por que estamos a passar; podemos mesmo dizer que só esse objetivo poderá dar sentido a esses sacrifícios.

7. Importa ainda sublinhar que a crise pode, em larga medida, ser enfrentada, no que de mais dramático encerra, com um esforço acrescido de solidariedade, também ele sem precedentes. A morte não teria remédio, a crise poderá tê-lo nos seus aspetos mais dramáticos com esse esforço acrescido e inédito de solidariedade. Sem a solidariedade efetiva nunca conseguiríamos vencer esta crise.

A riqueza da vida dos idosos

8. Importa também sublinhar que as vidas que foram preservadas, e que importa ainda preservar, são de pessoas de todas as idades, mas, sobretudo, vidas de pessoas idosas ou com outras doenças que não as impediam de viver mais tempo. Nem por isso essas vidas são merecedoras de menor proteção. Também sobre este aspeto se encontrou um consenso generalizado na sociedade portuguesa e esse é um facto a registar positivamente. Toda a vida humana tem um valor inestimável, a vida de um idoso ou de um doente, mesmo que com menor expetativa de anos pela frente, tem um valor igualmente inestimável. Além do mais, porque, como sublinhou várias vezes o Papa Francisco, os idosos são depositários da riqueza que representa a memória de um povo.

9. A este respeito, é de sublinhar o esforço desenvolvido pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) – direções e funcionários/as com a colaboração das autarquias e proteção civil – que permitiu o controlo de situações que poderiam tornar-se dramáticas. Todavia, não pode deixar de lamentar-se que muitas das mortes provocadas por esta pandemia tenham ocorrido em lares de idosos, mortes que, porventura, poderiam ter sido evitadas se esses lares tivessem beneficiado de outros apoios. Esta tragédia deveria despertar nas autoridades e em todos nós outra atenção para com as dificuldades por que passam os idosos, em especial e além do mais, a solidão e o abandono a que muitas vezes são votados. E também para as necessidades das instituições de solidariedade social que deles cuidam.

A linha da frente ao serviço da vida

10. Associada à redescoberta do valor inestimável de cada vida humana, está a redescoberta, a que também vimos assistindo, da importância e nobreza da missão dos profissionais de saúde ao serviço dessa vida. Nunca será demasiada a gratidão da sociedade portuguesa, como a de outros países, à tarefa abnegada e incansável desses profissionais de saúde, capazes de arriscar a sua própria vida e de sacrificar o convívio com os seus familiares para ser fiéis à sua missão. Um testemunho de amor ao próximo que edifica a todos, como exemplo a seguir também nos mais variados âmbitos profissionais e sociais. Essa redescoberta deveria ser uma ocasião para um mais justo reconhecimento, em vários planos, dessas profissões.

11. Tornou-se também mais evidente a missão e importância dos serviços de saúde. Tornou-se mais evidente que as despesas com esses serviços não são supérfluas ou facilmente dispensáveis. Pode continuar a debater-se, como até aqui, a parcela que nesses serviços caberá ao setor público, ao setor social e ao setor privado, mas é agora mais evidente que ao Estado cabe uma responsabilidade indeclinável de garantir que o acesso à saúde a ninguém é negado, nem pela falta de recursos económicos, nem pela maior ou menor gravidade da doença.

12. Não podemos deixar de anotar como a legalização da eutanásia e a mensagem cultural que essa legalização acarreta contraria notoriamente estas lições e redescobertas, relativas ao valor inestimável de cada vida humana e à nobreza da missão dos profissionais de saúde: precisamente porque vem admitir que algumas vidas humanas, marcadas pela doença e pelo sofrimento, tenham perdido valor e deixem de ser merecedoras de proteção, e porque vem desvirtuar a missão dos profissionais de saúde, a quem passa a ser pedido que deixem de proteger a vida em quaisquer circunstâncias.

A vida em plenitude

13. Se é verdade que esta pandemia nos tem feito redescobrir o valor inestimável da vida humana terrena, ela também nos tem feito redescobrir a precariedade dessa vida, precariedade que nem a ciência mais avançada, nem as riquezas materiais conseguem anular. Bastou um vírus minúsculo e invisível para nos relembrar isso. Por isso, esta deve ser também uma ocasião para redescobrir Deus, a quem devemos essa vida e que nos chama a partilhar com Ele uma outra Vida, de plenitude e eternidade. Esta deveria ser, acima de tudo, uma ocasião para nos preparamos para essa Vida.

A redescoberta do papel da família

14. Serviço essencial acima de todos revelou-se, mais uma vez o da família, primeiro e último reduto de apoio nas situações mais difíceis. Não podemos esquecer, porém, as dificuldades que recaíram sobre muitas das famílias, em especial as mais jovens, confrontadas com a necessidade de conciliar exigências do trabalho a partir de casa com o cuidado e a educação das crianças.

Outras redescobertas

15. Esta pandemia também nos tem feito redescobrir a importância social de muitos outros serviços, desde logo os que nunca deixaram de ser prestados mesmo em “estado de emergência”, com o que tal representou de dedicação e assunção de riscos por parte de quem os presta. Podemos destacar, entre outros, os serviços ligados à proteção civil, à segurança pública, ao abastecimento de bens alimentares e à comunicação social. Mas mesmo aqueles serviços cuja prestação foi interrompida se revelaram, afinal, também eles indispensáveis, porque cada um é, a seu modo, importante para a harmonia da vida social.

Todos no mesmo barco

16. «Estamos todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho» – estas frases do Papa Francisco, a propósito da pandemia Covid-19, têm ecoado nos ambientes mais diversificados e em vários cantos do mundo. Esta pandemia tem reforçado em muitos a consciência do Bem Comum como o bem «de todos e de cada um», que todos fazemos parte de uma só família humana e habitamos uma casa comum. Na verdade, a pandemia atinge, ou pode atingir a todos, ricos e pobres e de todos os países. E só poderemos dizer que dela nos libertamos quando todos, ricos e pobres e de todos os países, dela se libertarem. Enquanto assim não for, haverá sempre o risco de se reacender.

17. É claro que esta consciência de uma fraternidade universal e de um bem comum universal não é nova, mas esta pandemia faz com que a sintamos de um modo mais evidente. Isso não pode deixar de ter consequências, no plano cultural, político, social e económico. A unidade e coesão que, em vários planos, experimentamos na luta contra esta pandemia devem permanecer e aplicar-se também a outros âmbitos.

18. Desde logo, no que diz respeito à grave crise social e económica que surge como consequência indireta da pandemia. Também em relação a essa crise, deveremos dizer que «estamos todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho».

Neste campo, a pandemia pôs a descoberto o perigo de manter pessoas em situação de miséria, como os sem-abrigo, os imigrantes recentes e requerentes de asilo, bem como os habitantes de bairros de lata ainda infelizmente presentes no nosso país. Uma sociedade que se quer saudável, justa e democrática, não se pode “dar ao luxo” de ter no seu seio estas bolsas de miséria.

Dentro de cada país, e no nosso, para fazer face ao drama do desemprego, são necessários esforços conjuntos de empresários e trabalhadores. Não se conseguirá, obviamente, vencer tal flagelo sem o contributo de uns e outros. Mas tal não poderá significar uma maior transigência no que à justiça das relações de trabalho diz respeito.

19. Também temos assistido em Portugal, a propósito desta pandemia, a uma inusitada convergência não só entre as várias autoridades políticas, mas também entre vários partidos, os que apoiam o governo e os da oposição. Esta convergência entre governo e oposição foi até enaltecida por observadores estrangeiros. Não se trata de prescindir da crítica salutar própria da oposição num sistema democrático, mas de saber reconhecer o que a todos une, mais do que o que nos separa, os objetivos comuns, mais do que as divergências quanto aos meios de atingir tais objetivos.

O Estado e a sociedade civil

20. Como consequência indireta da pandemia Covid-19, espera-nos uma crise económica e social de uma dimensão que não tem paralelo na história mais recente. É de prever que o desemprego e o agravamento da pobreza atinjam níveis muito elevados. Sinal bem evidente da dimensão dessa crise são já os pedidos de ajuda para satisfação das mais básicas necessidades alimentares, que se têm multiplicado como nunca se viu no passado recente. Alguns desses pedidos vêm de pessoas que nunca esperariam vir a encontrar-se um dia numa situação destas.

21. A amplitude da crise tem feito redescobrir a importância do papel do Estado, não só no que diz respeito aos necessários apoios sociais, mas também no que diz respeito ao relançamento da economia. Um papel que vinha sendo descurado nas últimas décadas. Verifica-se agora que o mercado ou uma economia movida pelo interesse individual não conseguem, por si só, fazer face a tão exigente tarefa. A situação faz recordar o papel que assumiu o Estado, no plano das políticas social e económica, na sequência da igualmente grave crise da Grande Depressão que atingiu o mundo na primeira metade no século passado.

Esse papel do Estado é reconhecido pela doutrina social da Igreja, salvaguardado que seja o princípio da subsidiariedade, isto é, desde que ele não se torne omnipresente anulando as iniciativas da sociedade civil.

22. A este respeito, convirá não cair na ilusão de que do Estado se pode esperar a superação da crise sem o contributo da iniciativa e criatividade da sociedade civil, quer no plano dos apoios sociais, quer do relançamento da economia. Seria uma forma de desresponsabilização da sociedade civil esperar passivamente pela intervenção do Estado em todos os domínios. Será bom lembrar que, já antes da pandemia, o Estado nem sempre tem atualizado as comparticipações devidas às instituições de solidariedade social, que correm o risco de não poderem responder à missão a que foram chamadas. Convirá não esquecer, por outro lado, as limitações financeiras do Estado, o muito elevado nível da dívida pública portuguesa e que o agravamento desse nível se refletirá na taxa dos juros dessa dívida.

23. Enfrentar a crise social e económica que é consequência indireta da pandemia exige um esforço acrescido de solidariedade que deve partir também da sociedade civil. Um esforço que também não tem paralelo na nossa história recente. Não bastam ajudas esporádicas e ocasionais, movidas por emoções momentâneas. São necessárias ajudas, em dinheiro, bens ou trabalho voluntário, que sejam contínuas, consistentes e impliquem até renúncias significativas.

Há que ter presente que a crise não atinge todos por igual. As desigualdades que persistem na sociedade portuguesa vêm do período anterior à crise, mas esta, como já o revelaram alguns estudos, atinge mais gravemente as pessoas de menores rendimentos. E entre os portugueses, há quem tenha perdido quaisquer rendimentos de um dia para o outro e há quem mantenha os rendimentos que já tinha anteriormente. A estes últimos é pedido esse esforço suplementar de solidariedade.

24. Assistimos nestes tempos, com agrado, a muitas manifestações espontâneas dessa solidariedade que agora é exigida, nas comunidades cristãs, em associações das mais diversas, em grupos de colegas de trabalho, entre vizinhos. Importa manter e multiplicar este tipo de iniciativas.

Aos cristãos cabe uma responsabilidade particular: deverão ter por modelo o das primeiras comunidades cristãs, nas quais, pela comunhão de bens, não havia indigentes (At 4, 34-35).

Manifestamos o nosso apoio às iniciativas das Cáritas (Paroquial, Diocesana e Portuguesa), das Conferências Vicentinas e de tantos outros movimentos e associações, bem como à disponibilidade para implementar e ampliar a partilha de bens.

Repensar o sistema económico e social

25. A necessária reconstrução de um sistema económico, a que vamos assistir no futuro próximo, deverá ser uma ocasião para o repensar, para preservar o que ele tem de bom e para corrigir o que ela tem de negativo e injusto. Esta pode ser uma ocasião para construir um sistema que coloque a pessoa humana no seu centro e não seja gerador das desigualdades que o sistema que nos rege tem gerado.

26. Para tal, esta pode ser uma ocasião de construir um sistema em que os valores da solidariedade não movam apenas as ações de apoio social, mas penetrem também na economia e no mercado.

Essa é uma exigência que se sente hoje com particular acuidade. Escutamos apelos à responsabilidade social de bancos e grandes empresas, o que revela como uma economia movida pelo objetivo de maximização do lucro não responde às exigências da crise que atravessamos. Não pode, porém, esperar-se dessas empresas que atuem como instituições de solidariedade social.

27. Mais longe vai a proposta da encíclica Caritas in Veritate (n. 39), que é a de fazer penetrar a lógica do dom e da solidariedade na economia, nas empresas e no mercado, sem delegar essa lógica apenas na ação do Estado: «O binómio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco.»

Uma economia mais amiga do ambiente

28. Uma ocasião para repensar o sistema económico deverá servir também para o conjugar com as exigências da salvaguarda do ambiente, com particular atenção à transição energética imposta pelo combate às alterações climáticas.

Este é um domínio em que podem conflituar exigências mais imediatas e de curto prazo, de relançamento da economia e de criação de empregos pelos métodos mais rápidos e económicos, com exigências estruturais de mais longo prazo, que reclamam investimentos mais conformes a objetivos de desenvolvimento sustentável. Há que resistir à tentação de olhar para o curto prazo esquecendo perigos bem mais graves que se poderão verificar num futuro talvez não tão longínquo.

29. Não é, obviamente, descabido associar a salvaguarda do ambiente à proteção da saúde pública e à prevenção de epidemias ou outras calamidades. É verdade que as epidemias acompanham a história da humanidade desde tempos imemoriais e não são um exclusivo da era industrial; noutras épocas, sem os recursos sanitários de que hoje beneficiamos, foram bem mais mortíferas do que o são atualmente. Mas também já se demonstrou que a poluição atmosférica foi um dos fatores que facilitou a tão rápida difusão do novo coronavírus.

Globalização da solidariedade

30. Há quem, perante a pandemia Covid-19, afirme que esta coloca em causa o fenómeno da globalização (o comércio internacional, o turismo, as migrações), que deveria ser, a partir de agora, travado. As necessidades de contenção da difusão do vírus vieram demonstrar a pertinência do fecho de fronteiras que vinham sendo cada vez mais abertas. Este raciocínio poderá favorecer o reforço do chamado “nacionalismo de exclusão”, com o protecionismo económico e a hostilidade para com os migrantes.

Sempre houve, porém, antes desta era da globalização, pandemias que se estenderam por muitos países, não com a rapidez desta, certamente, muitas bem mais mortíferas do que esta. A reconstrução económica e social que se seguirá a esta pandemia e à crise que dela é consequência direta deve evitar destruir o que a globalização tem de positivo e, ao mesmo tempo, corrigir o que ela tem tido de negativo.

31. A globalização tem permitido a redução da pobreza absoluta, embora também tenha acentuado as desigualdades, pelo que os seus benefícios não têm chegado a todos por igual. As migrações, quando convenientemente reguladas, favorecem o desenvolvimento, quer dos países de origem dos migrantes, como se verificou em Portugal durante muitos anos, quer dos países de acolhimento, como se verifica também em Portugal atualmente. A globalização tem contribuído para a aproximação dos povos e culturas, o que é de favorecer, sem que tal deva, porém, conduzir a alguma forma de uniformização cultural ou de domínio de umas culturas sobre outras.

32. As regras de confinamento demonstraram como poderão ser limitadas as viagens aéreas, com as vantagens ecológicas daí decorrentes, muitas das quais, com o recurso a reuniões por videoconferência, se revelam agora dispensáveis. A redução dessas viagens não se traduz, neste aspeto, em menor comunicação, mais isolamento ou menos intercâmbios internacionais. Essa comunicação até pode ser mais intensa, porque mais facilitada.

33. Esta pode ser uma ocasião para, corrigindo os malefícios da globalização, como de há muito se diz sem que tal se tenha concretizado, implementar a globalização da solidariedade, para além da globalização económica. Mais do que reerguer muros, há que reforçar a conjugação de esforços entre vários países para responder aos desafios que são agora colocados.

Um aspeto em que é importante agir, desde já, de acordo com um princípio de globalização da solidariedade é o da crise económica, social e cultural que surge na sequência da pandemia Covid-19. Essa crise atingirá de forma ainda mais gravosa os países mais pobres e a esse facto não podem ser alheios os países mais ricos.

A saúde pública, um bem comum universal

34. Outro desses desafios é, desde logo, o próprio combate à pandemia, que supõe a conjugação de esforços de todos os países, pois nenhum deles «se salva sozinho». Importa ter presentes as especiais carências e limitação dos países mais pobres, que também enfrentam, para além desta, epidemias e outras doenças mortíferas de que pouco se fala. Este combate também deve reforçar em todos a consciência de que a saúde pública não pode deixar de ter, hoje mais do que nunca, uma dimensão universal, que se estende para além desta pandemia.

35. A este respeito, importa salientar a necessidade de tornar universal o acesso à futura vacina contra o Covid-19, o que supõe que se supere uma «utilização demasiado rígida dos direitos de propriedade intelectual no campo sanitário», que já a encíclica Caritas in Veritate (n. 22) tinha criticado. Sobre esta questão pronunciou-se o Papa Francisco na sua alocução do Regina Coeli do passado dia 3 de maio: «Gostaria de apoiar e encorajar a colaboração internacional que está a ter lugar com várias iniciativas, a fim de responder de forma adequada e eficaz à grave crise que estamos a atravessar. Com efeito, é importante unir as capacidades científicas, de forma transparente e desinteressada, para encontrar vacinas e tratamentos e garantir o acesso universal a tecnologias essenciais que permitam que as pessoas contagiadas, em todas as partes do mundo, recebam os cuidados de saúde necessários».

O maior desafio da história da União Europeia

36. Na origem da União Europeia está a lição de outra calamidade de dimensão mundial, a II Guerra Mundial, calamidade que revelou até que ponto extremo podem chegar os egoísmos nacionais. A União Europeia propõe-se, desde a sua origem, superar esses egoísmos através da construção de uma verdadeira comunidade. Numa verdadeira comunidade, como numa família, cada membro sente como seus os dramas dos outros.

37. Em nenhum outro momento da história da União Europeia, e já antes desta pandemia, se verificou uma tão grande crise de confiança dos cidadãos europeus nas instituições dessa União. O sentimento de pertença que pode dar coesão a essa comunidade poderá diminuir, ou até desaparecer, quando os cidadãos europeus deixarem de sentir que a União Europeia é alheia aos dramas que os atingem. Por isso, a União Europeia confronta-se hoje com aquele que é talvez o maior desafio da sua história: no combate à pandemia e à crise económica e social, deve agir como verdadeira comunidade, e não como simples conglomerado de interesses contrapostos em busca de compromissos.

38. Não vale agora considerar que as dificuldades por que passam os países mais atingidos pela crise são consequência de erros passados dos seus, o que poderia ser válido nos casos de indisciplina financeira, mas que, mesmo assim, não justificaria o facto de serem os povos, mais do que os governos, a sofrer com isso.

39. O Papa Francisco fez-se eco destas exigências, que por muitos são partilhadas, na sua mensagem Urbi et Orbi do último Domingo de Páscoa: «Hoje, à sua frente, a União Europeia tem um desafio epocal, de que dependerá não apenas o futuro dela, mas também o do mundo inteiro. Não se perca esta ocasião para dar nova prova de solidariedade, inclusive recorrendo a soluções inovadoras. Como alternativa, resta apenas o egoísmo dos interesses particulares e a tentação dum regresso ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o progresso das próximas gerações.»

Uma reflexão a continuar

40. Como no mundo inteiro e em todos os setores da sociedade, também entre nós a Igreja foi provada pela pandemia e obrigada a adaptar-se e a inovar no campo das celebrações, da catequese, dos laços comunitários, da sua presença e ação na sociedade. Nestas vertentes houve muitos sinais de criatividade pastoral que não se devem perder, mas antes valorizar no futuro, como manifestação de nova vida e de nova esperança.

Esta reflexão quer ser apenas um contributo construtivo e cordial sem pretensão de oferecer soluções técnicas e imediatas para os problemas enfrentados. Dado o evoluir da pandemia e a exiguidade de tempo desta Assembleia, está a ser preparada para a próxima Assembleia Plenária uma reflexão mais alargada e profunda sobre os desafios e consequências pastorais da pandemia na vida da Igreja.

Fátima, 16 de junho de 2020

 


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