Caríssimos diocesanos
Interpelam-nos sempre as palavras de Jesus em Quarta-Feira de Cinzas: «Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa». E o mesmo no respeitante à oração e ao jejum…
Gratuidade total da nossa parte, sem ponta de exibição ou orgulho, mesmo fazendo o bem. Conhecimento total, da parte de Deus, que nos conhece melhor do que nós próprios. Coincidirmos neste ponto, nós e Deus, é a conversão perfeita que cada Quaresma nos pede e só a graça divina proporciona. Aproveitemo-la de vez.
Coincidiremos afinal com Jesus, rejeitando as tentações do ter, do parecer e do poder, que são a substância negativa de todo o pecado, capital ou venial que seja. Realizaremos, pelo Espírito que expandiu na cruz, a filiação divina que é salvação completa: filhos de Deus e por isso irmãos. Só assim pode e deve ser, como realmente acontece em quem se converte, da Quaresma à Páscoa de cada um com Cristo.
Na mensagem que nos dirige para esta Quaresma, o Papa Francisco diz-nos também que é a partir da Páscoa de Cristo, quando nos refazemos nela, que o diálogo com Deus se torna perfeito e criativo. A partir de Deus, acolheremos a vida como dom divino e não algo primeiramente nosso. É muito feliz e oportuno este seu trecho: «A alegria do cristão brota da escuta e receção da Boa Nova da morte e ressurreição de Jesus: o kerygma. Este resume o Mistério dum amor tão real, tão verdadeiro, tão concreto, que nos proporciona uma relação plena de diálogo sincero e fecundo. Quem crê neste anúncio rejeita a mentira de que a nossa vida teria origem em nós mesmos, quando na realidade nasce do amor de Deus Pai, da sua vontade de dar vida em abundância» (Mensagem do Santo Padre para a Quaresma de 2020, «Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20).
Aqui se insere também a oração cristã, que, sendo filial, só poderá ser a que Cristo nos ensinou – mesmo que demore muito a aprender, mais no espírito do que na letra. Assim prossegue o Papa: «A oração poderá assumir formas diferentes, mas o que conta verdadeiramente aos olhos de Deus é que ela penetre profundamente em nós, chegando a romper a dureza do nosso coração, para o converter cada vez mais a Ele e à sua vontade».
Estas interpelações evangélicas e papais contrariam muito algumas opiniões correntes, quase a “cultura” que respiramos hoje – bem pouco “cultivada”, aliás. É fácil termos tudo como nosso, na posse ou no desejo, os outros como alheios e as coisas como consumos. Assim sendo, tudo se torna relativo a cada um, conforme esteja ou queira estar – e enquanto quiser estar. Enfraquece em nós a essência da vida, quando se rarefaz a convivência.
A passagem evangélica diz-nos que Deus «vê o que está oculto», ou seja, a quantidade e qualidade do real e do seu porquê. Este conhecimento integrado e completo é a etimologia duma palavra que usamos muitas vezes, mas nem sempre consequentemente e sobre várias questões. É a palavra “consciência”, provinda do latim cum-scire, que significa saber com, saber juntamente.
Em Deus a consciência é perfeita, pois tudo vê e conjuga, patente ou oculto. Por ser perfeito conhecimento e absoluta misericórdia, a consciência divina conhece-nos a todos, com um olhar que reanima e salva, como o manifestou em Cristo. Em Cristo, que bem conhecia o coração humano e tudo julgava a partir do Pai.
A consciência, religiosamente considerada, leva-nos a ver os outros como Deus os vê e a cuidar deles como Deus cuida de nós, em tantas mãos que aceitam prolongar as que nos estendeu em Cristo. Mãos que amparam a fragilidade dos outros e os envolvem em todas as fases da vida, sobretudo quando mais fragilizada. É este envolvimento cuidadoso que a palavra “paliativo” significa.
Mesmo falando em termos positivos e aceitáveis por crentes e não crentes, trata-se de exercitar uma humanidade mais consciente e conjugada, para que todos vivam e ninguém desista de viver. Assim atingiremos a consciência plena, correspondendo à totalidade do real.
Neste sentido, a Quaresma é tempo de exame de consciência, agradecendo o que Deus nos ensina e efetivando o que nos cumpre. Não a partir do que o sentimento prefira só por si, mas do que a realidade humana nos peça - e sempre convivida, como lhe é necessário e próprio. Porque a consciência, quando se apura, nada e ninguém ignora ou exclui. Bem pelo contrário, motiva-se a bem agir e ativa-se como responsabilidade e dever. Quando ficamos por sensações e reações imediatas e as sobrepomos ao que a consciência requer, damos razão à inveterada sentença: «Quem não vive como pensa, acaba por pensar como vive…»
Tudo se torna afinal uma “questão de consciência”, a qual, pela atenção à totalidade do real é precisamente o contrário das chamadas “questões fraturantes”, que tomam a parte pelo todo e contra o todo, reduzindo-o à disposição individual e ignorando as consequências negativas de tal atitude.
A Quaresma que iniciamos alarga-nos à maneira divina de ver, julgar e agir, como em Cristo se revelou. À sua luz, formaremos plenamente a consciência, nunca perdendo de vista a finalidade das coisas, quando atendemos a cada uma em particular.
Assim ganharemos a liberdade de consciência, pois a verdade liberta. Assim faremos a objeção de consciência, sempre que for o caso. Também assim começámos há dois mil anos. E não estivemos sós, mas acompanhados pelo melhor da consciência humana, como despontava já e continua agora, para que o progresso possa realmente acontecer.
Assim caminharemos na Páscoa de Cristo - que a própria morte incluiu, para a transformar em vida - e até à realidade mais profunda e oculta que só o olhar divino atinge. Por isso São Paulo descobriu e proclamou, com plena e jubilosa consciência, que «a realidade está em Cristo» (Col 2, 17). Ganhemo-la nós também, tal consciência, neste tempo tão propício de graça e conversão!
Sé de Lisboa, 26 de fevereiro de 2020
+ Manuel, Cardeal-Patriarca