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No dia 22 de janeiro, às 19h00, o Cardeal-Patriarca
de Lisboa, D. Manuel Clemente, vai presidir à
celebração na solenidade de São
Vicente, na Sé. Fique a conhecer a história
do padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa.
S. Vicente, diácono e mártir
S. Vicente é o mais célebre dos mártires
hispânicos, o único que se encontra incorporado
na liturgia da igreja universal. O seu dia celebra-se
a 22 de janeiro.
Desde muito cedo foi objeto de um culto amplamente difundido.
Já o grande poeta Paulino de Nola, que viveu
na segunda metade do século IV e na primeira
do século V, lhe atribuía o mesmo estatuto
que o de S. Ambrósio em Itália, ou o de
S. Martinho de Tours na Gália. O seu contemporâneo
Prudêncio dedica-lhe um longo poema, além
de largo excerto noutro hino a propósito da cidade
natal do mártir, Saragoça. Nos primeiros
anos do século V, por volta de 410-412, Agostinho
assim dizia em Cartago num dos sermões compostos
para a missa da festa do mártir ("Sermo"
276, PL 38, 1257):
«Qual é hoje a região, qual a província,
até onde quer que se estenda tanto o império
romano como o nome de Cristo, que não rejubile
por celebrar o dia consagrado a Vicente?»
Segundo a tradição hagiográfica,
os acontecimentos ter-se-iam passado na sequência
de uma série de decretos dos imperadores Diocleciano
e Maximiano, emitidos nos anos 303 e 304, que intentavam
reprimir o culto cristão por todo o império.
Vicente seria diácono em Saragoça, quando
é preso por um governador de quem não
temos qualquer outra referência e cuja existência
é muito problemática, de nome Daciano.
Recusando revelar o sítio dos livros de culto
e abjurar, como ordenava o decreto imperial, é
levado para Valência (episódio singular,
pois Saragoça e Valência pertenciam a províncias
distintas, uma à Tarraconense, a outra à
Cartaginense, cada uma com o seu próprio governador).
Das sequelas do interrogatório sob tortura a
que foi submetido, faleceu a 22 de janeiro do ano 304.
Após a morte, a hagiografia deixou-nos acontecimentos
miraculosos, como o episódio do corvo e o do
regresso do corpo a terra, após ter sido lançado
ao mar. Poucos anos depois, a partir de 313, no tempo
do imperador Constantino, constrói-se um sepulcro
martirial em Valência, que mais tarde daria lugar
uma basílica extramuros, onde o corpo era venerado
pelos devotos.
O culto difundiu-se rapidamente. Corroborando os textos
hagiográficos, Valência assumiu-se desde
logo como sua sede privilegiada. Aqui ficava a igreja
que acolhia o corpo do mártir, citada por Prudêncio
e pela Paixão traduzida mais adiante. Além
disso, uma inscrição transmitida por um
manuscrito do século IX indica que o bispo Justiniano
(527-548), membro de uma família de ilustres
literatos e eclesiásticos, além de muito
devoto do santo, terá deixado os seus bens em
testamento a um mosteiro dedicado a S. Vicente, que
a tradição identifica hoje com San Vicente
de la Roqueta.
O outro local importante era Saragoça, onde Vicente
fora diácono e onde o seu martírio começara.
Já em finais do século IV e inícios
do século V, o poeta Prudêncio refere o
culto que aí se desenvolvia, aludindo a umas
relíquias (fala de algum objeto com o sangue
do mártir). Em 541, durante o cerco de Childeberto,
rei da Nêustria, Saragoça teria sido salva
pela intervenção miraculosa da túnica
do mártir, em episódio mais adiante referido.
Na primeira metade do século VII, o poeta Eugénio
de Toledo dedica um epigrama a uma igreja do santo,
aludindo ao sangue e à túnica, túnica
que reaparece numa oração da missa composta
na mesma altura. Eugénio foi, de resto, arcediago
desta igreja.
Além de Valência e Saragoça, cidades
indissociáveis da figura de S. Vicente, o culto
cedo se estendeu a outras cidades da Hispânia.
Em Sevilha, já antes de 428, quando os Vândalos
invadem a cidade, a catedral onde Isidoro se recolheu
na véspera de morrer estaria dedicada a S. Vicente.
A catedral de Córdova também estaria sob
a invocação do mártir em período
anterior às invasões muçulmanas.
A epigrafia documenta-nos o desenvolvimento do culto
em época recuada. Temos conhecimento, talvez
no século V, de uma igreja em Toledo. No século
VI, há notícia de três igrejas dedicadas
ao mártir: uma em Nativola, Granada (consagrada
em 594), outra em Cehegín na província
de Múrcia, e uma terceira em Loja, perto de Córdova.
No século VII, no ano 644, consagra-se um templo
em Vejer de la Miel, perto de Cádis. Também
o calendário epigráfico de Carmona, porventura
do século VI ou VII, assinala o dia do santo.
No século VII, o impulso dado ao culto é
atestado pela significativa produção litúrgica
(um hino, orações, uma missa, sermões),
alguma da qual percorreremos nas páginas seguintes.
E desde o século VIII até ao século
X, a proliferação de igrejas dedicadas
a S. Vicente é notável por toda a Hispânia:
cite-se apenas Oviedo, onde em 761 são depositadas
umas relíquias trazidas de Valência.
Em África, sabemos que, por inícios do
século V, o dia de S. Vicente era celebrado com
grande solenidade. O ilustre Agostinho redigiu, entre
410 e 412, quatro sermões para este dia, um outro
com larga referência, e, se acaso for do bispo
de Hipona, um sexto entre 410 e 419 ("Serm. 4 De
Iacob et Iesau"). Em quatro deles indica expressamente
que tinham acabado de escutar a leitura da Paixão
do mártir. No século VI, o seu culto está
atestado por um calendário litúrgico de
Cartago, escrito entre 506 e 535, por alguns sermões
anónimos e pela epigrafia.
Na Gália e Aquitânia, o culto remonta,
pelo menos, a meados do século V. (...) O século
IX assiste a uma notável expansão do culto
de S. Vicente (...). Mas, de longe, a igreja mais famosa
na Gália é a de Paris. Em 541, em campanha
contra o rei visigodo Têudis, o rei Childeberto
da Nêustria sitia Saragoça. A túnica
de Vicente, mencionada por Eugénio de Toledo
e na missa reelaborada no século VI na Hispânia,
então reino dos Visigodos, foi levada em procissão
em redor das muralhas e a cidade foi salva. Childeberto
pediu então ao bispo da cidade relíquias
do mártir. Este concedeu-lhe a estola (espécie
de manto que se usava sobre a túnica). No regresso,
Childeberto edificou em Paris uma basílica dedicada
a S. Vicente onde depositou a relíquia, tendo
sido consagrada em 558 pelo bispo de Paris, Germano.
Este foi o panteão dos primeiros reis merovíngios.
Nos finais do século X e inícios do século
XI, a igreja foi reconstruída. Em 1163, a igreja
foi dedicada de novo a S. Germano, sendo desde então
conhecida como Saint-Germain-des-Prés. Em Itália,
o culto também se desenvolveu desde muito cedo.
(...)
Por estas brevíssimas notas, é evidente
a espantosa difusão que o culto a S. Vicente
alcançou nos séculos anteriores à
nossa nacionalidade. Ora, sucede que os inícios
do reino de Portugal, e, em particular, a cidade de
Lisboa, estão indissociavelmente ligados ao diácono
de Saragoça.
Já antes da conquista de Lisboa por D. Afonso
Henriques, temos notícia da existência
de basílicas dedicadas ao mártir no que
será mais tarde território português.
Um documento do ano 830 (seguido de dois outros de cerca
de 90S e do ano 911) refere uma igreja dedicada a S.
Vicente em Infias, Braga, que poderá remontar
ao século VII. Em 972, documentação
referente ao mosteiro do Lorvão menciona uma
igreja nas imediações de Coimbra; documentos
dos anos 970 e 973 aludem a uma Porta de S. Vicente,
nos limites das terras de um mosteiro designado "de
Bacalusti", nas margens do rio Douro; em 978 e
1002 refere-se uma igreja de S. Vicente "de Pararia".
Antes de 1094, quando passa para a posse do bispo de
Coimbra, o mosteiro da Vacariça, na região
da Mealhada, associava a invocação a S.
Vicente à de S. Salvador, e já antes de
meados do século XI, o mosteiro de Guimarães
tinha o mártir de Valência como um dos
seus titulares secundários. O censual de Braga,
escrito entre 108S e 1091, do qual se conserva apenas
a parte respeitante à região entre o Lima
e o Ave, refere oito igrejas dedicadas a S. Vicente,
e mais duas em que o mártir se associa a outro
patrono. Enfim, a documentação medieval
identifica noutras regiões outras igrejas sob
a invocação do mártir que podem
remontar a período anterior a meados do século
XII.
Em Lisboa, a mais antiga atestação remonta
ao tempo do nosso primeiro rei. Ao sitiar Lisboa em
1147, D. Afonso Henriques fizera o voto de, se a cidade
lhe caísse nas mãos e os infiéis
fossem aniquilados, mandar construir dois mosteiros
junto a dois cemitérios que se revelavam necessários
para sepultar os cruzados que sucumbiam junto às
muralhas do castelo. Uma das igrejas foi erigida junto
ao cemitério dos teutónicos em 1148 sob
a invocação de S. Vicente. Não
sabemos se já ali haveria um culto mais antigo,
se era uma criação expressa. Tendo o rei
dado a escolher ao bispo D. Gilberto e aos cónegos
uma das duas igrejas, estes optaram por Santa Maria
dos Mártires (a atual Sé de Lisboa), junto
ao cemitério dos ingleses. A igreja de S. Vicente
ficou então na posse do rei, e foi dirigida por
presbíteros ingleses, até D. Afonso Henriques
nomear o primeiro prior, Gualter, de origem flamenga,
a que se seguiram cónegos regrantes da confiança
do rei. Isto é relatado na "Notícia
da fundação do mosteiro de S. Vicente",
redigida em 1188.
Mas o que liga intrinsecamente Lisboa a S. Vicente é
a chegada das suas relíquias ocorrida em 1173.
Conta a "Crónica de Al-Razi", composta
no século X, que conhecemos por intermédio
de uma tradução portuguesa do século
XIV feita a mando de D. Dinis, que, durante a perseguição
de Abderramán I (756-788), o corpo de S. Vicente
fora levado de Valência, onde estaria na antiga
igreja sob sua invocação, para o Promontório
Sacro, hoje Cabo de S. Vicente, em Sagres. O caráter
sagrado do local já na Antiguidade era assinalado,
desde, pelo menos, o geógrafo Estrabão,
que viveu nos séculos I a. C. e I d. c., Plínio
(século I d. C.) e outros autores do mundo clássico.
A "História PseudoIsidoriana" e o geógrafo
Al-Idrisi em obra de meados do século XII afirmavam
que ali existiria uma "igreja dos corvos".
Porventura, desde época recuada, ali poderia
ter havido uma capela. Esta tradição sustentava
a pretensão de Lisboa, pretensão essa
apoiada nos séculos XVI e XVIII por Ambrosio
de Morales e Henrique Flórez: seria aqui que
estavam efetivamente as relíquias do santo.
Diga-se que Lisboa não era a única cidade
a presumir ter o corpo do mártir. Aimoin de Saint-Gerrnain-des-Prés
conta que o corpo do mártir fora trazido, em
863, de Valência para Castres, uma cidade no sul
de França. No século XI, um braço
num relicário fora levado de Valência para
Bari. Também San Vincenzo ai Volturno (desde
inícios do século VIII), e depois Cortona
e Metz, Benevento e Monembasia (no sul da Grécia),
reclamavam deter o corpo do santo. Por outro lado, o
século XII é um período de intenso
"achamento" de corpos santos e relíquias,
geralmente com o objetivo de promover a peregrinação
e ampliar o prestígio e o estatuto das respetivas
igrejas. Relembre-se apenas, no início do século,
Braga e Compostela, que se dedicaram à disputa
da posse de corpos santos.
Neste contexto, em 1173, de acordo com um texto de
finais do século XII ou do século XIII
da autoria de Estêvão, chantre da catedral
de Lisboa, e que segundo Aires Nascimento, corresponde
ao momento da instauração do culto na
diocese de Lisboa, um anónimo alerta para a existência
do corpo do mártir na ponta do Algarve, em mãos
dos infiéis. No dia 15 de setembro, as relíquias
chegam a Lisboa, ficando na igreja de Santa Justa, antes
de se recolherem no dia seguinte na Sé, com a
oposição da igreja real de S. Vicente.
O mártir de Valência tornou-se assim o
padroeiro de Lisboa, sendo o dia da chegada do seu corpo
celebrado na liturgia e em animadas festas populares
(15 de setembro). E este dia, que no século XIX
mudou para 16 de setembro, foi comemorado até
recentemente.
A memória de S. Vicente, padroeiro principal
do patriarcado de Lisboa e da diocese do Algarve, é
evocada pela Igreja a 22 de janeiro. Neste dia, no ano
2000, o atual patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente,
recebeu a ordenação episcopal.
Paulo Farmhouse Alberto
In "Santos e Milagres na Idade Média em
Portugal", vol. I, ed. Centro de Estudos Clássicos
- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Publicado em 21.01.2015,
no site www.snpcultura.org
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