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Abertura da Conferência anual da
Comissão Nacional Justiça e Paz: “Pontes
e muros – Europa, migrações e diálogo
de culturas”
1. A minha breve introdução nesta conferência
anual da Comissão Nacional Justiça e Paz
inspira-se nas palavras que o Papa Francisco dirigiu
à Conferência (Re)Thinking Europe, organizada
pela Comissão das Conferências Episcopais
da Comunidade Europeia (Comece) em colaboração
com a Secretaria de Estado do Vaticano, em Roma, a 28
de outubro passado (cf. L’Osservatore Romano,
ed. port., 2 de novembro de 2017, p. 8-10).
Na verdade, tratando-se de refazer um Continente segundo
o melhor do seu passado, para garantir o melhor do seu
futuro, é precisamente enquanto “ponte”
que ele se reencontrará.
Muros tivemos, de separação e defesa,
da muralha de Adriano e do limes do Danúbio,
que aliás não conseguiram travar o avanço
dos “bárbaros”, ao muro de Berlim,
que também não conseguiu travar a marcha
da história em sentido bem diferente do pretendido
por quem o mandou levantar.
Mas pontes também houve, como aquela que a missionação
cristã da Alta Idade Média estabeleceu
entre latinos, germanos, celtas e eslavos, ou a que
os povos ibéricos iniciaram entre Continentes
conhecidos e desconhecidos, na primeira globalização
que houve.
Entre sombras e luzes, certamente, como tudo o que é
humano. Mas com um ganho de luz no que entretanto nos
transcendeu a todos, dum e doutro lado dessas pontes,
com um avanço comum em humanidade acrescida.
Esse mesmo que agora importa retomar e aumentar.
Quando o Império Romano caiu a Ocidente, levando
consigo a segurança, o comércio e a civilização
que mais ou menos garantia, tudo ficou isolado e enfraquecido
por muito tempo. E não foi propriamente por outro
império que se estabelecesse ou qualquer organização
geral que se impusesse que as coisas mudaram. Aqui e
ali resistia um núcleo episcopal ou um algum
senhor, pouco mais. Entre o século V e o IX pouco
mais do que isso…
Entretanto, lembra o Papa Francisco, algo de realmente
novo acontecia, que veio a difundir-se e a criar pontes,
de pilar em pilar, pelo Continente fora. Em meados do
século VI, Bento de Núrsia congrega no
seu mosteiro um grupo estável de homens orantes
e operosos, que tratam da terra e cantam em coro, acolhem
quem chega e copiam palavras que não se deviam
perder. E dá-lhes uma regra que inspirará
muita gente, dentro e fora dos claustros, rumo a uma
sociedade nova e assente em dois pilares, até
aí pouco reconhecidos: cada um na relação
com todos e todos unidos no respeito por cada um, ao
mesmo tempo iguais e distintos. Evocando tudo isto e
o muito que alastrou a partir daí, com a regra
beneditina e iniciativas congéneres, o Papa conclui
e projeta: «Por conseguinte, pessoa e comunidade
são as bases da Europa para cuja construção,
enquanto cristãos, queremos e podemos contribuir.
Os tijolos deste edifício chamam-se diálogo,
inclusão, solidariedade, desenvolvimento e paz».
2. Distingue em seguida cada um destes “tijolos”
para a (re)construção da Europa, também
como terra de pontes e não de muros. Sobre o
primeiro, o diálogo, adianta: «Hoje toda
a Europa, do Atlântico aos Urais, do Polo Norte
ao Mar Mediterrâneo, não pode permitir-se
perder a oportunidade de ser antes de mais um lugar
de diálogo, ao mesmo tempo sincero e construtivo,
no qual todos os protagonistas têm igual dignidade».
Diálogo também inter-religioso, na realidade
atual do Continente, ultrapassando «um certo preconceito
laicista, ainda dominante, [que] não é
capaz de entender o valor positivo para a sociedade
do papel público e objetivo da religião,
preferindo relegá-la para uma esfera meramente
particular e sentimental».
O segundo “tijolo” é a inclusão
que «não é sinónimo de nivelamento
indiferenciado» mas acolhimento daquelas diferenças
que não ponham em causa, antes acrescentem, humanidade
a todos. Diz o Papa que «somos autenticamente
inclusivos quando sabemos valorizar as diferenças,
assumindo-as como património comum e enriquecedor».
Também neste sentido, «os migrantes são
um recurso, não um peso».
O terceiro “tijolo” é a solidariedade,
outra maneira de dizer comunidade. Porque «ser
comunidade implica a ajuda recíproca e, portanto,
não podem ser apenas alguns a carregar pesos
e a fazer sacrifícios extraordinários,
enquanto outros permanecem escondidos na defesa de posições
privilegiadas».
O quarto “tijolo” é o desenvolvimento,
no sentido plenamente humano e não meramente
quantitativo, retomando o nº 14 da encíclica
Populorum Progressio do Beato Paulo VI: «Para
ser autêntico, [o desenvolvimento] deve ser integral,
quer dizer, promover todos os homens e o homem todo».
Finalmente, o quinto “tijolo” para a (re)construção
do nosso Continente é a paz, como tarefa de todos.
O que «exige amor pela verdade, sem a qual não
podem existir relacionamentos humanos autênticos,
e promoção da justiça, sem a qual
a opressão é a norma predominante».
3. Pode parecer demais, mas menos do que isto também
não será suficiente, para edificarmos
uma Europa de pontes e sem muros. E o Papa termina o
seu notável discurso como começara, lembrando
o exemplo de São Bento, criador de comunidades
personalizadoras dos seus membros e acolhedoras de quem
chegasse. Tudo a partir dele e dele apenas, decidido
a recomeçar segundo os ensinamentos de Cristo.
Juntou companheiros e recriou com eles aquela convivência
nova a que o Evangelho chama “Reino”. Reino
do Deus de todos e onde, por isso mesmo, todos cabem.
Nem passou muito tempo para que uma rede de comunidades
“beneditinas” fosse alastrando e, com outras
iniciativas congéneres, aparecesse o Continente
que hoje somos, do Mediterrâneo ao Mar do Norte
e do Atlântico aos Urais. Continente que não
existira antes como comunhão essencial de crença
e dignidade básica de todos. Com todas as imperfeições
e contrastes que consentiu foi, indiscutivelmente, um
enorme salto em termos de humanidade.
Ligando a iniciativa de São Bento no século
VI ao que escrevera três séculos antes
o autor da Carta a Diogneto, o Papa Francisco conclui
agora: «O autor da Carta a Diogneto afirma que
“o que é a alma no corpo, assim são
os cristãos no mundo”. Nesta época,
eles são chamados a dar uma nova alma à
Europa, a despertar a sua consciência, não
para ocupar espaços – isto seria proselitismo
– mas para animar processos, que gerem novos dinamismos
na sociedade. Foi precisamente o que fez São
Bento, não por acaso proclamado por Paulo VI
padroeiro da Europa: ele não se preocupou por
ocupar os espaços de um mundo perdido e confuso.
Sustentado pela fé, ele olhou para mais além
e, de uma pequena gruta de Subiaco deu vida a um movimento
contagioso e incontível, que redesenhou o semblante
da Europa».
Cristo fala da força dum pouco de fermento que
leveda toda a massa e da mais pequena das sementes que
cresce acima das outras plantas. Inspiremo-nos com os
bons exemplos e garantamos assim o futuro.
Lisboa, 25 de novembro de
2017
+ Manuel Clemente
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