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Carta aos diocesanos de Lisboa, no início
do ano pastoral 2017/2018
Caríssimos diocesanos
1. De novo vos escrevo, no início do ano pastoral.
Pode ser útil, entre o muito que há a fazer,
quando a vida como que recomeça no espaço
social e eclesial. Reabrem-se as escolas, retomam-se os
ritmos, preparam-se imediatamente as catequeses e outras
atividades paroquiais. Com votos amigos de bom ano pastoral
2017-2018, procuro apenas relembrar o principal da nossa
vida conjugada, como Igreja que somos no Patriarcado de
Lisboa.
Na exortação apostólica Evangelii
Gaudium, inspiração básica do nosso
Sínodo Diocesano, o Papa Francisco escreve o seguinte:
«Toda a evangelização está
fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida,
celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é
fonte da evangelização. Por isso, é
preciso formar-se continuamente na escuta da Palavra.
A Igreja não evangeliza se não se deixa
continuamente evangelizar. É indispensável
que a Palavra de Deus “se torne cada vez mais o
coração de toda a atividade eclesial”»
(EG, nº 174) – esta última frase é
citação da exortação apostólica
pós-sinodal Verbum Domini, nº 1, do Papa Bento
XVI, documento que não deixaremos de reler ao longo
do ano.
Como lembro na introdução ao Programa e
Calendário Diocesano, o número 38 da Constituição
Sinodal de Lisboa - nosso objetivo específico de
2017-2018 - enuncia-se assim: “Fazer da Palavra
de Deus o lugar onde nasce a fé”. Detalho
depois alguns pontos desse número. Acrescentam-se
“Sugestões Programáticas”, apuradas
em várias instâncias diocesanas e sistematizadas
pelo Secretariado da Ação Pastoral e o Secretariado
do Sínodo Diocesano. São relativas 1) à
centralidade, 2) ao conhecimento e 3) à transmissão
da Palavra. Cumpre agora a cada comunidade concretizá-las
do modo mais adequado.
O Domingo 29 de outubro será no Patriarcado de
Lisboa o “Domingo da Palavra”, seguindo a
indicação do Papa Francisco: «Seria
conveniente que cada comunidade pudesse, num Domingo do
Ano Litúrgico, renovar o compromisso em prol da
difusão, conhecimento e aprofundamento da Sagrada
Escritura. […] Não há de faltar a
criatividade para enriquecer o momento com iniciativas
que estimulem os crentes a ser instrumentos vivos de transmissão
da Palavra» (Misericordia et Misera, nº 7).
Cada comunidade encontrará certamente o melhor
modo de acentuar então o lugar imprescindível
da Palavra de Deus para o brotar constante da fé
que nos salva.
Tudo isto importa para prosseguirmos em Sínodo,
concretizando-o agora nas comunidades e, através
delas, na sociedade que têm a missão de fermentar
com o Evangelho recebido e transmitido. Sem esquecer que,
além do objetivo específico para este ano
pastoral, temos de atender ao objetivo transversal do
triénio 2017-2020: “Fazer da Igreja uma rede
de relações fraternas” (Constituição
Sinodal de Lisboa, nº 60). O que requer maior reconhecimento
mútuo de carismas, ministérios e serviços,
com mais corresponsabilidade institucional e prática
a todos os níveis da nossa vida eclesial.
2. “Fazer da Palavra de Deus o lugar onde nasce
a fé”, constitui, de facto, um belo programa.
Entendendo também que esta “Palavra”
é eminentemente pessoal – na pessoa de Cristo,
Verbo encarnado, e na comunhão que gera entre as
pessoas que somos e aqueles a quem chegarmos.
Assim o afirma o Catecismo da Igreja Católica em
dois trechos esclarecedores: «A fé cristã
não é uma “religião do Livro”.
O Cristianismo é a religião da “Palavra”
de Deus, não duma palavra escrita e muda, mas do
Verbo encarnado e vivo» (nº 108). E mais adiante:
«A fé […] não é um ato
isolado. Ninguém pode acreditar sozinho, tal como
ninguém pode viver só. […] Foi de
outrem que o crente recebeu a fé; a outrem a deve
transmitir. O nosso amor a Jesus e aos homens impele-nos
a falar aos outros da nossa fé» (nº
166).
Temos fé num Deus que nos “fala” na
criação e Se diz plenamente na vida de Jesus,
onde confluem toda a tradição bíblica
e toda a indagação humana. Como escreve
Bento XVI: «A Palavra eterna, que se exprime na
criação e comunica na história da
salvação, tornou-se em Cristo um homem,
“nascido de mulher” (Gl 4, 4). Aqui, a Palavra
não se exprime num discurso, em conceitos ou regras;
mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa
de Jesus. A sua história, única e singular,
é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade»
(Verbum Domini, nº 11).
Creio ser este o ponto central do nosso programa a cumprir.
Importa que uma “ecologia integral”, como
o Papa Francisco nos propôs na encíclica
Laudato si’, nos faça entender e salvaguardar
a criação, como primeira Palavra dum Deus
que nos ama e por isso mesmo nos cria e sustenta. E que
nas nossas comunidades tudo conflua para Cristo, acolhendo
e meditando as Escrituras, nele cumpridas e por nós
transmitidas na variedade das línguas e situações
deste mundo. Toda a catequese, como o próprio vocábulo
significa, há de ser “eco” da Palavra
que Deus absolutamente profere em Cristo. Todos os encontros
comunitários hão de partir dela, para a
concretizar no dia-a-dia pessoal, familiar, eclesial e
sociocultural.
3. Também a Liturgia há de ser entendida
como escuta e cumprimento sacramental da Palavra. É
de novo Bento XVI a lembrá-lo, na exortação
apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de
Deus: «Considerando a Igreja como “casa da
Palavra”, deve-se, antes de tudo, dar atenção
à Liturgia sagrada. Esta constitui, efetivamente,
o âmbito privilegiado onde Deus fala no momento
presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta
e responde. Cada ação litúrgica está,
por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura»
(Verbum Domini, nº 52).
Neste sentido, só podemos estar agradecidos ao
movimento litúrgico que, com o Concílio
Vaticano II, nos restituiu uma Liturgia mais próxima
da antiga tradição e isenta de motivos posteriores
que a tinham tornado menos clara e expressiva. Como bem
sintetiza um dos principais colaboradores do Beato Paulo
VI na reforma litúrgica providencialmente empreendida:
«No que respeita à Eucaristia, começou
por reorganizar-se o quadro da sua celebração.
Reencontrou-se dessa forma a disposição
dos lugares que fora a da basílica antiga […]:
a cadeira da presidência para o bispo ou o presbítero,
rodeada pelos bancos dos concelebrantes e dos ministros,
o ambão da Palavra de Deus, o altar do sacrifício,
que é simultaneamente a mesa do Senhor, disposto
de maneira a permitir ao sacerdote celebrar voltado para
o povo, favorecendo o diálogo entre o celebrante
e a assembleia. O Concílio restaurou a concelebração,
que manifesta bem a unidade do sacerdócio, quando
ela tinha praticamente desaparecido no Ocidente há
mais de mil anos. […] A inovação mais
marcante foi o regresso ao uso das línguas vivas,
que fora o da Igreja primitiva. […] A Palavra de
Deus reencontrou o lugar que ocupava no tempo dos Padres
da Igreja. A assembleia dos crentes ouve ler novamente
a Lei ou o Profeta, o Salmo, o Apóstolo e o Evangelho.
[…] A oração eucarística é
novamente dita em voz alta, de modo que ninguém
assiste mais à Missa sem ouvir da boca do sacerdote
o relato da instituição da Eucaristia e
sem ter respondido pela sua aclamação à
ordem do Senhor: Fazei isto em memória de Mim.
[…] Na comunhão, cada batizado pode receber
o Corpo de Cristo na mão, depois de ter proclamado
o seu Amen, como no tempo de Agostinho e de Cirilo em
Jerusalém. Também se pode, em certos dias,
beber do cálice do Senhor: Bebei todos dele, dissera
Jesus aos seus apóstolos. A Eucaristia da Igreja
nunca foi mais do que hoje uma reiteração
fiel da Ceia de Jesus» (Pierre Jounel, A Missa ontem
e hoje, Fátima, Secretariado Nacional de Liturgia,
2016, p. 44-45).
A citação é um pouco longa, mas creio
ser oportuno fazê-la, para nos inteirarmos, porventura
mais e melhor, da importância da Liturgia –
e da Eucaristia em especial – como lugar por excelência
da transmissão da Palavra, comunitariamente ouvida,
sacramentalmente concretizada e mais de acordo com os
primeiros elos da autêntica tradição
eclesial.
4. Continuando a receção da Constituição
Sinodal de Lisboa, dedicaremos depois e especialmente
2018-2019 à vivência litúrgica, como
“lugar de encontro” com Deus e com os outros
a partir de Deus (cf. CSL, nº 47). E 2019-2010 a
“sair com Cristo ao encontro de todas as periferias”
(cf. CSL, nº 53).
Entretanto, sobre este último ponto, retomo duas
considerações pontifícias sobre a
Palavra de Deus e a sua projeção social
e evangelizadora. Primeiro, quando Bento XVI escreve e
transcreve: «O amor ao próximo, radicado
no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso constante
como indivíduos e como comunidade eclesial local
e universal. Diz Santo Agostinho: “É fundamental
compreender que a plenitude da Lei, bem como de todas
as Escrituras divinas, é o amor […]. Por
isso, quem julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo
menos uma parte qualquer delas, mas não se empenha
a construir, através da sua inteligência,
este duplo amor de Deus e do próximo, demonstra
que ainda as não compreendeu”» (Verbum
Domini, nº 103). Na verdade, compreender a Palavra
é um exercício de inteligência prática,
só cumprido no amor concreto a Deus e ao próximo
– e de Deus no próximo. Assim mesmo Jesus
Cristo o “disse e fez”.Depois, sobre a “nova
evangelização”, que hoje tem necessariamente
de complementar a tradicional “missio ad gentes”:
«O nosso deve ser cada vez mais o tempo de uma nova
escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização.
É que descobrir a centralidade da Palavra de Deus
na vida cristã faz-nos encontrar o sentido mais
profundo daquilo que João Paulo II incansavelmente
lembrou: continuar a missio ad gentes e empreender com
todas as forças a nova evangelização,
sobretudo naquelas nações onde o Evangelho
foi esquecido ou é vítima da indiferença
da maioria por causa de um difundido secularismo»
(Verbum Domini, nº 122). É bem evidente que
no Patriarcado de Lisboa há lugar e urgência,
tanto para o fomento da vida cristã nas comunidades
constituídas, como para o anúncio mais criativo
do Evangelho a quem o esqueceu e para o primeiro anúncio
a quem nunca o ouviu.
Na sua exortação programática, base
do nosso caminho sinodal em Lisboa, o Papa Francisco estimula-nos
a um renovado anúncio evangélico que nos
renovará também a nós, como Igreja
em missão. Com palavras que nos entusiasmarão
decerto, neste começo de ano pastoral, especialmente
dedicado à Palavra de Deus – de Deus para
nós e de nós para todos: «Um anúncio
renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios
ou não praticantes, uma nova alegria na fé
e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu
centro e a sua essência são sempre o mesmo
Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto
e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre
novos; ainda que sejam idosos, renovam as suas forças
[…]. Sempre que procuramos voltar à fonte
e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam
novas estradas, métodos criativos, outras formas
de expressão, sinais mais eloquentes, palavras
cheias de renovado significado para o mundo atual. Na
realidade, toda a ação evangelizadora autêntica
é sempre “nova”» (Evangelii Gaudium,
nº 11).
Caríssimos diocesanos: Além de saudar-vos
com muita estima, pretendo com esta carta ativar, ainda
mais, a receção da Constituição
Sinodal de Lisboa, no ano pastoral que iniciamos. Repito
que não se trata de fazer necessariamente “mais
coisas”. Trata-se sobretudo de prosseguirmos biblicamente
inspirados e criativamente conjugados na caminhada que
o Espírito impele para a evangelização
do mundo, constante “programa” da Igreja.
– Nossa Senhora, que inteiramente acolheu, incarnou
e ofereceu o Verbo de Deus, nos ensinará a fazê-lo
agora!
Convosco, em oração e companhia,
† Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, 1 de setembro de 2017
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