Estamos a viver tempos únicos da nossa existência. Tempos que mudaram, do
nada, a nossa vida e os nossos hábitos. Passamos muitas semanas em que parece
que vivemos um eterno entardecer, onde parece cair sempre a noite sem fim.
Densas trevas cobriram as nossas ruas, praças, cidades. Trevas essas que
tomaram conta das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio incómodo e um
vazio desolador, que conseguiu paralisar tudo à sua passagem, sentia-se no ar, via-
se nos gestos e nos olhares. Durante semanas, a Cidade ficou em silêncio. Sem
ruido, sem trânsito, sem aviões a cruzar os céus, sem o som das palavras e do riso
das crianças. Apenas se ouvia o som na natureza misturado como som do silêncio.
Esta tempestade veio desmascarar a nossa vulnerabilidade, a nossa pequenez e a
nossa fragilidade. O Homem todo poderoso ajoelhou-se de medo, perante um vírus
minúsculo, só visível num microscópio, colocando a nuas nossas falsas e
supérfluas seguranças com que fomos construindo os nossos projetos, os nossos
hábitos e as nossas prioridades. Pela primeira vez, nas nossas vidas, vivemos
quase todo o Tempo da Quaresma, o Tríduo Pascal e todo o Tempo Pascal em
casa, com as Igrejas fechadas, em confinamento, sem podermos fazer tudo aquilo
a que estávamos habituados. Para mim, foi como se tivesse feito um grande retiro:
um retiro que me fez pensar na vida, nas prioridades, no mundo. Foi um tempo de
graça, um tempo favorável, para perceber que precisamos de muito pouco para
viver e ser felizes, mesmo no meio das tempestades da vida e muito do que
considerava como que imprescindível, afinal, não é assim tão importante. Foram
tempos para rezar, ler, meditar e percebi que posso viver muito bem sem futebol,
sem concertos, sem viajar, sem ir a restaurantes ou cafés, mas não conseguiria
viver sem livros, sem música, sem a família, sem os amigos e sem Deus. Nos
últimos meses, oque mais me doeu e dói é a privação do encontro pessoal face a
face, a impossibilidade do toque e da carícia, do beijo ou do abraço, da saudação
calorosa.
Existe um velho ditado que diz: "o que não te mata, torna-te mais forte". Não
acredito nisso. Acho que as coisas que nos tentam matar deixam-nos tristes. A
força vem das coisas boas. Da família, dos amigos, da satisfação do trabalho duro. São essas coisas que nos mantêm inteiros. São a essas coisas que temos que nos agarrar quando tudo parece estar mal. E nada é tão bom se não for partilhado e,
por isso, mesmo que à distância, a vida, a fé e a alegria tem que ser partilhada
comos outros, para que esta cruz seja menos pesada na vida de todos.
Estamos agora na fase de desconfinamento. E logo a desconfiar que nada será
como dantes. Abrem-se algumas portas, que nos convidam a retomar, com cautela,
a nossa vida comunitária habitual. Mas também nos dizem que precisamos de nos
adaptar a um "novo normal". Respeitar o distanciamento social, usar a máscara e desinfetar as mãos são hoje os mandamentos principais do amor a si mesmo e ao
próximo. E esta proximidade, num mundo global, é cada vez mais digital do que
artesanal. A nossa casa tornou-se não apenas um lugar a habitar, mas também
local de estudo e de trabalho à distância, espaço para a catequese e templo de
uma liturgia mais familiar. A pandemia acelerou e precipitou algumas mudanças
que, muito a custo, íamos fazendo. Mas, de repente, este é o nosso "novo normal"
e há que recomeçar, não para voltar ao mesmo, mas para enfrentar com ousadia
criativa um futuro, que não se compagina com programas de longo ou médio prazo.
«Que volte a vida, com cuidado. Que voltem as pessoas, os passeios, os risos. Que
volte o sol, os olhares, os negócios, os sabores. Que volte a vida, aos poucos, mas
que, por favor, não volte a fanfarronice, o "eu tenho mais do que tu", a luta por um
lugar na fila, as buzinas nervosas, as pisadelas os atropelos, o individualismo sem
gente dentro. Que fique um bocado do que aprendemos, só um bocado. Que fique
a bondade coletiva, a visão para além das muralhas do umbigo. Que fique o
essencial. Que fique o que vimos que podíamos ser quando vimos que teríamos de
o ser. Que volte oque somos e que o que somos seja melhor do que o que fomos».
Toda a natureza se regenerou nestes tempos; a poluição diminuiu, o ar tornou-se
mais puro, as águas dos rios ficaram límpidos e transparentes, animais
reapareceram onde nunca se tinham visto e até vieram passear para as cidades
dos Homens, com os Homens confinados. Mas no regresso ao "novo normal" já
deu para perceber que, talvez, o único ser vivo que não se regenerou foi o Homem.
Basta ver os comportamentos de líderes, cidadãos, pessoas da Igreja, para se
perceber que, afinal, talvez não tenhamos aprendido nada com esta pandemia e
iremos voltar ao velho "anormal" em que vivíamos.
Diz-nos o Papa Francisco: «Se pudemos aprender algo em todo este tempo, é que
ninguém se salva sozinho. As fronteiras caem, as paredes desabam e todos os
discursos fundamentalistas se dissolvem perante uma presença quase impercetível,
que manifesta a fragilidade de que somos feitos. [...] Este é o tempo favorável do
Senhor, que nos pede para não nos conformarmos nem nos contentarmos e, ainda
menos, para não nos justificarmos com lógicas substitutivas ou paliativas, que nos
impedem de suportar o impacto e as graves consequências do que estamos a viver.
Este é o momento propício para encontrar a coragem de uma nova imaginação do possível, com o realismo que só o Evangelho nos pode oferecer. O Espírito, que
não se deixa fechar nem instrumentalizar com esquemas, modalidades e estruturas
fixas ou caducas, propõe-nos que nos unamos ao seu movimento, capaz de
"renovar todas as coisas"».
Duas imagens ficarão na minha memória sobre estes tempos de pandemia. No dia
27 de março, numa Praça de São Pedro vazia, debaixo de chuva, um homem
sozinho caminha, em passos vacilantes e com aparente fragilidade, para ir beijar os
pés de Jesus crucificado, como se carregasse, naqueles passos vacilantes, todo o
peso e sofrimento de uma humanidade ferida - o Papa Francisco. E, no dia 12 de
maio, em Fátima, naquele lugar onde habitualmente estava um "mar de luz"
existiam, apenas, algumas trémulas chamas de velas a cortar a escuridão daquele
espaço de fé imenso.
Tal como Elias no Monte Horeb, precisamos descobrir o Senhor, nas brisas suaves
desta vida, pois «eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é
invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer” (Antoine de Saint-Exupéry).
Frei Pedro Monteiro, O. Cam.