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Homilia no encerramento da Assembleia Sinodal
Homilia na Missa do 2º Domingo do Advento, em Sínodo
Diocesano
Ouvir, sonhar, acolher, preparar…
Caríssimos irmãos e irmãs, nesta
Missa conclusiva da assembleia sinodal:
Acabámos de ouvir a Palavra de Deus, como ressoa
hoje nas nossas comunidades em geral, no segundo Domingo
do Advento. À sua luz veremos luminosamente tudo,
porque nos abre e aprofunda a perspetiva segundo a própria
visão divina, como foi captada e reconhecida pelos
nossos antepassados na fé, bíblica e cristã.
Não faltaram nestes dias apelos à centralidade
da Palavra de Deus nas nossas comunidades, catequeses
e análises das coisas. Muito coincidentes, também
nesse ponto, com o que o Papa Francisco nos propõe
na recente Carta Apostólica Misericordia et misera,
para a celebração anual de «um Domingo
inteiramente dedicado à Palavra de Deus, para compreender
a riqueza inesgotável que provém daquele
diálogo constante de Deus com o seu povo»
(MM, 7).
Escutámos primeiro o profeta Isaías e o
seu sonho largo de reconciliação universal,
quando não se praticar mal nem destruição
em Jerusalém ou em qualquer outra parte, quando
o conhecimento dum único Senhor preencher o país
como as águas ao leito do mar… Não
devemos deixar de “sonhar” os sonhos de Deus,
nem de rumar à sua realização. Os
cristãos que neste mesmo momento vivem em países
destroçados pela guerra, ou ameaçados da
sua própria eliminação, enviam-nos
mensagens assim, plenas duma esperança que só
Deus garante. Entre nós, comunidades cristãs
e sociedade que integramos, é no mesmo sonho que
criamos futuro: um futuro para todos, corolário
do Deus de todos.
Seguiu-se São Paulo, escrevendo aos primeiros cristãos
de Roma. Usa um verbo que o nosso Sínodo toma para
a diocese com insistência pastoral, o verbo “acolher”:
«Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo vos acolheu,
para glória de Deus». Especifica depois o
modo como Cristo acolheu, servindo os judeus sem esquecer
os gentios. Provindo inteiramente de Deus, foi inteiramente
para os outros, todos os outros.
Quem quer que se abeirasse de Cristo era acolhido de coração
inteiro. Mesmo quando tinha tanto que fazer, detinha-se
e escutava, pois cada pessoa lhe trazia, a seu modo, um
vasto mundo. Quando certo tipo de “comunicação”,
mesmo tecnicamente sofisticada, nos alheia dos outros,
como realmente são, nem há Evangelho nem
temos Igreja. Da nossa parte e das nossas comunidades,
assumimos o apelo do Papa Francisco para «fazer
crescer uma cultura de misericórdia, com base na
redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na
qual ninguém olhe para o outro com indiferença,
nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos»
(MM, 20).
No Evangelho, foi a vez de João Batista concretizar
a antiga profecia e “preparar” o caminho do
Senhor, endireitar as suas veredas. Nada tinha em si que
não fosse expectativa e disponibilidade para que
a profecia finalmente acontecesse. Por isso foi ele o
Precursor.
Estamos nós, estão os nossos contemporâneos,
num hoje comum que em geral não basta e a muitos
nem chega... Neste mesmo Sínodo foram detalhadas
várias situações sociais incompatíveis
com a dignidade e a justiça que a todos são
devidas. Pois bem, irmãos e irmãs, o Advento
que esperamos terá de encontrar em cada uma das
nossas comunidades o verdadeiro corpo eclesial d’Aquele
que quer vir e responder a tantas necessidades, de corpo
e de espírito, pelo caminho aberto da nossa conversão
evangélica.
É esta propriamente a missão, propósito
da nossa assembleia. E que não diverge do acolhimento,
pois só missiona quem acolhe. Assim em Deus, cuja
primeira Pessoa é “Pai” em relação
ao Filho; a segunda é “Filho” em relação
ao Pai; e a terceira é o Espírito do mútuo
acolhimento de ambos. Entre nós, nisto e principalmente
à imagem e semelhança de Deus, dirigimo-nos
aos outros porque, antes de mais, os acolhemos no coração
e os procuramos na vida. Viver é, na verdade, conviver,
objetivo duma missão premente e sempre alargada.
Comemorámos nestes dias a Beata Maria Clara do
Menino Jesus, e São Francisco Xavier, a primeira
natural da nossa diocese (século XIX) e o segundo
que daqui partiu para a Índia (século XVI).
Juntamos-lhes hoje São João Damasceno, que
viveu no século VII-VIII no Próximo Oriente.
Três diversas situações, todas missionariamente
entendidas. Maria Clara, porque era preciso cuidar dos
pobres e fazê-lo no espírito franciscano,
mesmo quando não eram permitidas fundações
religiosas entre nós. Francisco Xavier, porque
os novos caminhos marítimos não haviam de
servir apenas para comerciar coisas, mas sobretudo para
comunicar vida, a vida de Cristo. João Damasceno,
que foi sacerdote e monge já sob o domínio
dum povo doutra crença, mas sem perder a sua e
reforçando os cristãos entre Damasco e o
deserto de Judá, ou seja, em pequena geografia.
Uma foi além do risco, outro foi além do
mar, o último além das circunstâncias
que lhe poderiam enfraquecer o ânimo. É o
que cantamos e continuamos a cantar no nosso hino sinodal:
«Longe ou perto o necessário / É mostrar
Cristo presente!»
Aliás, mais um vez verificámos que é
precisamente esta atitude de acolher os outros no coração
e de os procurar em missão que tanto resume como
garante a Igreja e lhe abre o futuro. O que a Igreja de
Lisboa tem de mais convincente e promissor reside precisamente
nas comunidades, paroquiais ou outras, em que se têm
sempre presentes os horizontes largos ou próximos
da missão e se fazem permutas de experiências
missionárias de além e aquém mar;
donde partem cristãos, clérigos ou leigos,
e também famílias para períodos mais
ou menos dilatados de evangelização, que
tanto acrescem com o mesmo espírito as comunidades
de origem. Ou onde a avaliação pastoral
se faz e refaz com o mesmo critério, das pessoas
que se procuraram, dos sós que se passou a acompanhar,
dos mais que se integraram, dos ambientes que se conseguiram
evangelizar. Como acontece, por exemplo, com as atuais
“Missões País”, levando milhares
de jovens estudantes a partilharem por algum tempo a vida
de muitas paróquias e descobrindo aí mesmo
o Cristo que sempre os espera naqueles que lá encontram.
E como voltam depois, para evangelizar os seus próprios
colegas, nas suas mesmas escolas… Ou com os “campos
de férias” e outras iniciativas de voluntariado
e serviço.
Esta realidade sempre reencontrada está no âmago
do nosso Sínodo. Assim correspondemos ao apelo
que o Papa Francisco nos fez na Evangelii Gaudium e convém
lembrar: «Sonho com uma Igreja missionária
[…]. A reforma das estruturas, que a conversão
pastoral exige, só se pode entender nesse sentido:
fazer com que todas elas se tornem mais missionárias,
que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias
seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes
pastorais em atitude constante de “saída”
e, assim, favoreça a resposta positiva de todos
aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade. Como dizia
João Paulo II aos bispos da Oceânia, “toda
a renovação da Igreja há de ter como
alvo a missão, para não cair vítima
duma espécie de introversão eclesial”»
(EG, 27).
Concluindo esta assembleia, o Sínodo Diocesano
de Lisboa dá graças a Deus por tudo quanto
foi fazendo connosco, no sentido duma maior comunhão
com Ele e com todos; e também duma mais nítida
e convicta radicação evangélica de
quanto somos e fazemos como Igreja de Cristo no mundo.
Concretamente neste nosso mundo mais próximo, em
que nos situamos: o Patriarcado de Lisboa, da capital
a Alcobaça, de Azambuja ao mar.
Mundo quantitativa e qualitativamente complexo, desigual
e desencontrado, entre um passado que já foi e
um futuro que ainda não divisamos bem. Complexo,
porque habitado por uma centena de povos de vários
continentes, com diversos níveis de instalação
e convivência sociocultural – os que vão
além da mera sobrevivência… Desigual,
e parecendo até conformado com desigualdades gritantes,
antigas e recentes. Desencontrado, pois ainda estamos
para nos retomar mais à frente, quando incluirmos,
em pluralidade legítima e criativa, todos quantos
chegaram entretanto. Talvez só nalguma zona ainda
rural da diocese se mantenha a sociabilidade habitual
e simples de outros tempos. Tudo o mais se tornou menos
estável e previsível, enfraquecidas as solidariedades
tradicionais e mal definidas as futuras.
Com o Papa Francisco, queremos reforçar o olhar
evangélico sobre a cidade, que se traduz por palavras
como “compaixão “ ou “misericórdia”,
recuperando o seu significado autêntico. Por “compaixão”
queremos dizer solidariedade e compromisso com todos os
que sofrem, pelo que sofrem por si ou pelo que outros
os fazem sofrer. Como há meio século escreveu
o Concílio Vaticano II, as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos nossos contemporâneos
são as alegrias e as esperanças, as tristezas
e as angústias dos discípulos de Cristo
(cf. Gaudium et Spes, nº 1). Por “misericórdia”
indicamos um modo de olhar a realidade a partir do que
é mais frágil e pobre, esquecido e periférico.
Foi assim que Deus nos olhou e procurou, como acreditamos
que aconteceu em Jesus Cristo. E também cremos
que, se assim olharmos a realidade, começaremos
por onde mais urge começar, para podermos construir
finalmente a cidade de todos.
Na nossa assembleia sinodal experimentámos a força
e a beleza da refletir e rezar em comum, dando espaço
a Deus para nos conduzir aonde e como queira. “Sínodo”
significa caminho conjunto; e sinodalmente queremos prosseguir,
pois só assim seremos fermento duma sociedade que
se reencontre e prossiga na senda da justiça e
da paz.
A todos manifestamos a nossa disponibilidade para a concretização
duma sociedade de todos para todos. Assim mesmo nos reforçámos
em Sínodo, para dar glória a Deus no serviço
do próximo. Com Cristo e Maria – permanente
Senhora do seu Advento.
Sínodo Diocesano, 4 de dezembro
de 2016
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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