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Carta aos diocesanos de Lisboa, no início
do novo ano pastoral
Como há dois mil anos começou
o Reino
1. Em Setembro, a vida retoma o seu curso geral, após
o chamado “tempo de férias”. Das famílias
às escolas, das empresas à sociedade, recuperam-se
os ritmos habituais. Também assim nas nossas comunidades,
da catequese à liturgia e à ação
sociocaritativa. Desejo a todos as maiores felicidades,
aos que continuam nos mesmos lugares e serviços
e aos que assumem novos encargos, paroquiais e outros.
Tudo isto é um bem, na cadência certa da
vida que prossegue. Mas, para quem está no mundo
como tantos mais, convém perguntar o porquê
da vida eclesial, do que ela significa realmente para
os discípulos de Cristo. Não bastaria retomarmos
o habitual, mesmo que positivo, como os dias que sucedem
às noites, ou a roda das estações
do ano.Sim, partilhamos com todos os seres humanos o modo
comum de ser e conviver, como o Criador nos sustenta,
com deveres e direitos a irmanar-nos e responsabilizar-nos.
Mas havemos de o fazer como cristãos, isto é,
participantes do Espírito de Cristo e alargando
o seu Reino. Permiti-me insistir neste ponto identitário,
que julgo particularmente oportuno.Estamos no ano 2016
da era de Cristo, vivendo o que com Ele começou
e só com Ele pode progredir. E sempre à
sua maneira, tão diferente de qualquer projeto
temporal que se impusesse exteriormente ou estabelecesse
à força. É natural e positivo que,
como cidadãos entre cidadãos, integremos
projetos de melhoramento social e procuremos modos de
o conseguir sempre mais e melhor, dentro aliás
dum legítimo pluralismo de perspetivas e opções.
Mas é sobrenatural e necessário que, seguindo
a atitude de Jesus Cristo, abramos sempre o ocasional
ao definitivo, o princípio ao fim e o tempo à
eternidade. Não nos alheamos da realidade, damos-lhe
a sua verdadeira dimensão.
Neste sentido, pode dizer-se que o nosso programa essencial
está feito há dois milénios. Para
leigos, consagrados e clérigos, trata-se de, pela
palavra e pelo testemunho, partilhar com cada pessoa e
em cada momento a possibilidade propriamente “cristã”
de viver. Quando nasce, cresce e morre, que seja com Cristo;
quando goze de saúde, a perca ou a recupere, que
seja com Cristo também; e o mesmo quando ria ou
quando chore, quando trabalhe ou descanse, quando estude
e descubra, quando reze e contemple.
Por isso acompanhamos os outros da conceção
ao nascimento, do nascimento à maturidade, à
velhice, às exéquias e ainda depois. Tal
como Cristo o fez, nascendo, vivendo, morrendo e ressuscitando,
para assim continuar, através do corpo eclesial
que connosco forma, a acompanhar a vida dos outros, abrindo-a
em cada etapa à própria vida de Deus.
Por isso é Pastor, para nos conduzir a pastagens
que não secam nunca (cf Sl 23). Por isso há
“pastoral” propriamente dita – essa
mesma, essencial e constante, na cidade ou no campo, na
escola, no hospital ou na prisão, seja onde for,
seja para quem for. No ano pastoral que iniciamos, como
quando tudo recomeçou há dois milénios,
para dar sentido e pleno cumprimento a toda a vida e à
vida de todos. Mais do que viver para um futuro possível,
o cristão preenche cada momento com a certeza das
coisas finais, como Cristo as alcançou e oferece.
2. Nos dias em que vivemos, de cultura tão rarefeita
e dispersa, a nova evangelização significa
redescobrir e partilhar o modo cristão de ser,
como possibilidade concreta de vida em abundância.
Significa iniciação cristã autêntica
e vida em Cristo sempre, pessoal, familiar e comunitariamente
levada. Como só pascalmente se alcança,
pois «a felicidade está mais em dar do que
em receber» (Act 20, 35).
É por isso que um novo ano pastoral – como
este de 2016-2017 – só pode ter como plano
e programa, no que toca ao essencial, alcançar
uma catequese, uma liturgia e uma ação sociocaritativa
sempre mais conformes com as palavras e atitudes com que
Jesus há dois mil anos inaugurou o Reino. Reino
que a ressurreição garantiu para sempre
e a vida dos cristãos assinala e oferece. Um Reino
assim só filialmente se alcança, pois a
Deus pertence e por Deus se estende. Se progredirmos na
aprendizagem do Pai Nosso, experimentaremos e faremos
experimentar bem mais a realidade plena do Reino de Deus.
Será a melhor maneira de vivermos o tempo, a partir
de Deus, com indispensável entrega e confiança.
Como escreve um autor contemporâneo: «Falar
do Reino significa falar de um coração novo,
de relações pessoais diferentes, de estruturas
humanas que correspondam à forma como Deus criou
e sonha este mundo. A questão decisiva está
em entrar no Reino e como participar pessoalmente num
espaço de salvação, de felicidade
e de agradecimento – que Deus, manifestando-se,
põe ao alcance de todos por intermédio de
Jesus. No fundo de tudo, existe uma decisão, um
desejo, uma vontade, que não coloca condições».
E continua, indicando o essencial do que devemos ser e
pedir, diante de Deus e da vida: «Por este motivo,
Jesus, perante a estranheza dos seus discípulos,
refere-se às crianças como modelo: é
preciso receber o Reino de Deus como o faz uma criança,
ou seja, a partir da necessidade e da fragilidade de quem
sabe que não pode fazer nada por si próprio
(Mc 10, 15, Lc 18, 17)» (Armand Puig, Jesus. Uma
biografia, Lisboa, Paulus, 2006, p.342).
Diante das dificuldades que certamente tocarão
a cada um - família a família, comunidade
a comunidade – coloquemo-nos filialmente diante
de Deus, neste ano e sempre. Demos-Lhe oportunidade para
construir também em nós e por nós
o seu Reino, como só Ele sabe e pode. Passagens
como a seguinte, das primeiras gerações
cristãs, devem ser levadas muito a sério,
antes, durante e depois de qualquer programação,
para que não seja demasiadamente nossa: «Se
o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo»
(Tg 4, 15).
3. Partilho convosco estes sentimentos e convicções,
no início dum ano pastoral marcado por acontecimentos
relevantes, como o tricentenário da qualificação
patriarcal de Lisboa e o centenário das aparições
de Fátima. Acontecimentos que não nos devem
distrair do que mencionei e é de sempre, mas devemos
aproveitar para o fazer melhor e mais definitivamente.
O tricentenário da qualificação patriarcal
de Lisboa (7 de novembro de 1716, pelo Papa Clemente XI)
evoca o empenho que D. João V pusera em ilustrar
a capela real e o zelo que demonstrava, como os seus antecessores,
pela propagação da fé, como então
se entendia. Trezentos anos depois, só pode lembrar-nos
a nós, num contexto histórico e eclesiástico
tão diferente, que toda a Igreja é uma realidade
missionária, como a missão há de
ser vivida agora, em termos de nova evangelização
e reciprocamente ad gentes.
Temos várias ações programadas e
já anunciadas (v. o Programa-calendário
diocesano) da música erudita a um musical, da edição
de biografias episcopais e de cartas pastorais dos patriarcas
à renovada apresentação museológica
da diocese. Será muito bom que tudo isto seja aproveitado
pelas nossas comunidades, para ganharem ainda maior consciência
do que foram, são e hão de ser, como Igreja
de Cristo em Lisboa e em missão.
A celebração do centenário das aparições
de Fátima, antes e depois de 13 de maio, reforçará
em todo o ano pastoral a dimensão mariana essencial
à Igreja. «Quando chegou a plenitude do tempo,
Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, […]
a fim de recebermos a adoção de filhos»
(Gl 4, 4-5). Tendo acompanhado o seu Filho de Belém
ao Calvário, Maria tem sido por sua vez enviada,
da glória em que com Ele vive, para nos repetir,
no longo curso da vida da Igreja, as mesmas palavras que
disse em Caná: «Fazei o que Ele vos disser!»
(Jo 2, 5). Como A ouviram os pastorinhos há um
século, também o faremos nós agora,
com redobrada devoção e conversão
evangélica. Isso mesmo nos dirá decerto
o Papa Francisco, cuja presença aguardamos de coração
inteiro.
4. A caminhada sinodal que encetámos em 2014 envolveu
milhares de diocesanos que estudaram os vários
capítulos da exortação apostólica
Evangelii Gaudium do Papa Francisco, procurando o melhor
modo de, também aqui, concretizarmos o “sonho
missionário de chegar a todos”.
Muito se rezou, pensou e agiu nesse sentido, de então
para cá, e assim continuaremos a fazer. Com o que
chegou à comissão preparatória do
sínodo – e foi sendo publicado na Voz da
Verdade e no “site” do Patriarcado –
elaborou-se um Documento de trabalho, já divulgado
também, que está a ser estudado pelos membros
convocados segundo os cânones para a assembleia
sinodal que, de 30 de novembro a 4 de dezembro, lhe dará
a redação final.
Importa entender esses dias como um momento especial duma
caminhada diocesana muito mais larga na participação
e no tempo, que talvez constitua o principal do que aconteceu
– e será inteiramente respeitado e projetado
para o futuro, em termos de sinodalidade crescente, cada
vez mais aplicada na vida das comunidades e da diocese
no seu todo.
Do muito que o Documento de trabalho do sínodo
nos oferece, sintetizo e destaco «sete critérios
de discernimento e ação eclesiais»
(DT, 24 ss) que poderão orientar desde já
a vida das nossas comunidades, pois acolhem as indicações
da Evangelii Gaudium e a reflexão partilhada pelos
grupos sinodais: 1º) Critério do tempo, disponibilidade
para acompanhar pessoas e situações. 2º)
Critério da unidade, prevalecendo sobre tensões
e conflitos. 3º) Critério da realidade, um
saudável realismo aberto à esperança.
4º) Critério da totalidade, não esquecendo
a globalidade da proposta evangélica. 5º)
Critério da evangelização, (re)configurando
nesse sentido todas as estruturas e rotinas. 6º)
Critério da autenticidade, para que o essencial
evangélico ressalte em tudo e sempre. 7º)
Critério da qualidade e da beleza, como o Evangelho
oferece e a evangelização não dispensa.
Missão, sinodalidade, família e misericórdia
são palavras-chave dos nossos dois últimos
programas diocesanos, como se podem reler nas respetivas
apresentações. Em seu torno caminharemos,
para nos retomarmos como Igreja em missão, alargando
o Reino. E a alma de tudo o que fizermos será essa
mesma misericórdia, que nos identifica com o próprio
Deus na atenção prioritária aos mais
pobres e frágeis. Para tal nos fortalece o presente
Jubileu, cuja graça permanece e nos impele.
Convosco, irmão e amigo,
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, 1 de setembro de 2016
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