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Saciar fome e sede, ter veste e alojamento, são
necessidades básicas de todos e requisitos solidários
também, para qualquer “sociedade” que
queira realmente sê-lo. São a primeira face
da realidade humana, que sempre carece e espera. Face
em que nos espelhamos e onde se espelha o próprio
Cristo, no rosto de quem nos interpela. O mesmo Cristo
que saciava a fome material dos outros, para os saciar
depois, doutra fome mais larga e persistente. Mas com
esta sequência, necessariamente. Também por
isso, as nossas comunidades, em que se manifesta e expande
o corpo eclesial do Ressuscitado, não podem, nem
querem, ignorar a face inteira da fome, sede, nudez ou
desabrigo de qualquer ser humano. Se havemos de recusar
o materialismo, igualmente evitaremos qualquer espiritualismo
oco, para nos dedicarmos, isso sim, a um serviço
concreto e global, como o Evangelho ensina. Do mesmo modo
consideremos que assistir aos enfermos e visitar os presos,
nos faz tocar diretamente a Cristo, que no horto sofreu
agonia e prisão.
Diz um passo evangélico que quem O tocava ficava
curado. Toquemo-Lo em que sofre, para alívio alheio
e cura própria. Demonstrando assim que ninguém
se pode salvaguardar do sofrimento dos outros. Bem pelo
contrário, é na relação com
quem sofre que nos curamos também a nós.
Aliás, as chamadas “questões fraturantes”,
que sucessivamente irrompem, fraturam-nos sobretudo a
nós como humanidade, quando se alegam assim chamados
“direitos” de alguns para nos desresponsabilizar
da resposta solidária que devíamos dar a
todos, com mais cuidado e companhia.
Quanto a enterrar os mortos, terá seguimento nas
atuais circunstâncias, para além do que requer
como serviço organizado. Para quem parte, é
dignidade reconhecida e assim mesmo manifesta. Para quem
fica, é amizade comprovada, que compartilha o luto
e faz companhia.
Dar bom conselho, ensinar os ignorantes e corrigir os
que erram, são outras tantas demonstrações
de que com eles realmente estamos e para eles igualmente
somos, numa pedagogia que não os dispensa nem nos
dispensa a nós. Como Jesus, que nunca despedia
quem O procurava, antes longamente ensinava, assim temos
de estar na grande e mútua escola que este mundo
deve ser.
Com verdadeiro interesse pelo bem dos outros, que não
os deixe dissolver valores em caprichos, nem vaguear sem
rumo. Há muita sabedoria adquirida e comprovada
por milénios de humanidade, que tanto devemos guardar
pessoal como socioculturalmente. Assim como não
há liberdade de escolha, quando nem se conhece
o que escolher.
Consolar os tristes ganha hoje particular pertinência,
pois nada entristece tanto como o isolamento em que se
vive, mesmo que fugazmente entretido. Para as pessoas
que somos, a alegria é outro nome da verdadeira
convivência, hoje escassa e por vezes nula. Prevenir
ou consolar tristezas é não deixar ninguém
sem companhia, seja onde for ou quando for, quer para
festejar os êxitos quer para ultrapassar os fracassos.
Temos tantas razões, possibilidades e meios para
nos acompanharmos sempre, que é grande contradição
fazê-lo pouco ou nunca.
Perdoar as injúrias, é dar a quem as faz
uma oportunidade mais para se refazer melhor. Para um
discípulo de Cristo, é ocasião para
seguir o seu mestre, que injuriado não respondia
com injúrias, assim mesmo demostrando a grandeza
que tinha. Foi esta a sua maneira de converter a tantos
e nos converter a nós. No presente Jubileu, reparemos
especialmente na magnanimidade do Pai do filho pródigo,
parábola maior da misericórdia divina.
O mesmo se diga do sofrer com paciência as fraquezas
do nosso próximo, não desistindo de ninguém;
como Deus não desiste de nós, quando demoramos
tanto a recuperar-Lhe a semelhança, apesar da graça
que nunca recusa. Lembra-nos São Paulo que «a
Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O
Deus com o pecado por amor de nós, para que em
Cristo nos tornássemos justiça de Deus»:
Pensemos muito nisto, para que as fraquezas dos outros
nunca sejam pretexto para desistir seja de quem for. Situa-se
aqui, precisamente aqui, o desafio do amor cristão.
Que também não deixa de rogar a Deus por
vivos e defuntos, pois a caridade nunca acabará.
Somos, tantas vezes, uma imensidão de sós...
Quem não tem família por perto, vizinhos
atentos, visitas nos hospitais, nas prisões, ou
lares de idosos… E também nas nossas ruas
e espaços, que se transformam frequentemente em
locais de duvidosa compensação e perigosos
consumos, para jovens e menos jovens sem ambiente doméstico
nem melhor enquadramento. A estes e outros desajustamentos
pessoais e sociais responderão as obras de misericórdia
na respetiva complementaridade, pois tanto alojam os peregrinos
de algo ou de si próprios como dão bom conselho
e recriam relações. São campos abertos
à caridade criativa, com muito por fazer na cidade
de nós todos.
Na caminhada sinodal de Lisboa, algumas conclusões
dos grupos vão já nesse sentido, valorizando,
por exemplo, os nexos familiares, comunitários
e intercomunitários, para que ninguém fique
isolado nem se isole a si próprio, da infância
à velhice. E para formar “familiarmente”
as pessoas, quer em ordem ao matrimónio quer para
o serviço da Família de Deus, que é
a Igreja no seu todo. É este um campo prioritário
para a ação diocesana; e ainda mais se definirá
por certo, na conclusão programática a que
chegaremos em sínodo.
Somos e seremos, ao mesmo tempo, verdadeiros cidadãos
do mundo. E não só porque hoje toda a distância
se anula como quem prime um botão, mas também
porque deparamos aqui com uma crescente diversidade étnica
e cultural concentrada em pouco espaço, o nosso
espaço comum.
Num lugar central de Lisboa e arredores podem cruzar-se
dezenas de pessoas de várias proveniências
e tradições, religiosas ou outras. Acolhamos
quem chegue agora, em busca de sobrevivência e trabalho,
como acolhemos outros há algum tempo já.
E no futuro, eles e nós, seremos a sociedade de
todos, sobre a base comum de direitos humanos respeitados
e, de facto, praticados.
Largo campo, também este, para a prática
das obras de misericórdia. Em termos propriamente
cristãos, sabemos que o bom futuro é assegurado
pelas vidas que se oferecem a Deus, única maneira
de se repartirem por todos. Como Cristo depôs a
sua nas mãos do Pai, que logo a distribuiu em abundância.
Esta foi a sua Páscoa, que celebraremos inteiramente,
quando também connosco for assim. Por isso mesmo,
ainda que tudo corporalmente se exteriorize, é
espiritualmente que se garante. Aí mesmo, no “segredo”
que apenas o Pai vê e recompensa, como o Evangelho
ensina. Aí mesmo, quando jejuamos de tudo o mais
que não seja Deus, para nos repartirmos em esmola
que a todos alcance. Não foi outro o êxodo
de Cristo, não será outro o nosso, que lhe
herdamos o Espírito.Com todos vós, em conversão
à misericórdia divina,
† Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 10 de fevereiro
de 2016
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