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Renato foi deixado pelos pais e Luís
viveu na rua e no mundo da toxicodependência. Foram
ajudados, cada um, pela Casa do Gaiato de Lisboa e pela
Comunidade Vida e Paz e hoje são dois homens que
conseguiram fazer a passagem para uma vida nova. Não
foram vidas fáceis, dizem, ao mesmo tempo que garantem
ter sempre notado a presença de Alguém nos
seus trajetos.
Renato Ferreira tinha apenas 10 anos quando, juntamente
com mais dois dos seus três irmãos, chegou
à Casa do Gaiato de Lisboa. Os pais tinham-se divorciado
há algum tempo, a mãe emigrara para o Canadá
e a avó materna não estava a conseguir garantir
a educação dos quatro netos, todos rapazes,
entre os 15 e os 8 anos. Estávamos então
em 1984. “Os meus pais separaram-se muito cedo.
O meu pai veio do Ultramar com problemas de álcool
e as coisas não correram bem. Eu viva no campo
e eram mais os dias que me ‘baldava’ à
escola do que os que ia… andava sempre na paródia,
com a rapaziada lá da minha zona. A minha avó
Maria Piedade, que já faleceu, foi uma mãe
para mim e para o meus irmãos e tentou sempre dar-me
uma educação correta, nunca fomos mal-educados
e sempre soubemos respeitar. Só que as coisas eram
complicadas, a minha avó tinha de trabalhar e eu
continuava a faltar à escola e a atrasar-me nos
estudos”, recorda Renato, ao Jornal VOZ DA VERDADE.
Natural do Vimeiro (Lourinhã), Renato, hoje com
40 anos, diz que se recorda de a avó ter “falado
vagamente” consigo e com os seus irmãos acerca
da nova vida que, então, iriam viver. “Quando
chegámos à Casa do Gaiato de Lisboa foi
um choque, porque estávamos habituados à
família, mas passados 15 dias já estávamos
habituados à nova casa e à nova família.
Nós, quando chegámos, não sabíamos
bem o que era a Casa do Gaiato, quais as regras, nem quando
podíamos ir a casa…”, lembra. Nessa
época, a visita às famílias acontecia
apenas uma vez por ano, na altura do Natal. “Tudo
foi novo. Éramos 150 rapazes e não foram
tempos fáceis”, reconhece.
Ao chegar à Casa do Gaiato de Lisboa, em 1984,
Renato foi então para o 2º ano da escola.
“Estudei até ao 9º ano, mas depois optei
por deixar a escola e começar a trabalhar na área
da tipografia, nos desenhos e montagens. Era algo que
gostava. Aliás, eu desejava ter uma profissão
que me desse garantias para o futuro, porque tinha perspetiva
de criar família, um dia mais tarde”, aponta.
Durante uns tempos, Renato trabalhou na tipografia da
Casa do Gaiato de Lisboa, ao mesmo tempo que “dava
apoio aos rapazes”. Depois foi estagiar, durante
mais de um ano, para uma gráfica em Lisboa. Tirou,
entretanto, a carta de condução e mostrava-se
sempre disponível para colaborar com a Casa do
Gaiato, “em tudo o que fosse preciso”. Certo
dia, há pouco mais de dez anos, ao ir buscar os
rapazes da Casa à escola pública, conheceu
uma professora do 5º e 6º ano da telescola de
São Julião, com quem começou namoro.
Casou no dia 15 de julho de 2006, deixando então
de residir na Casa do Gaiato de Lisboa.
Hoje, Renato é pai do pequeno Filipe, de 4 anos,
e garante que se as condições sociais do
país se alterarem terá mais filhos. Vive
em São Julião do Tojal com a nova família,
que constituiu. A profissão? É um dos monitores
da ‘rapaziada’, como Renato gosta de chamar
aos 60 rapazes, entre os 11 e os 33 anos, que atualmente
estão na Casa do Gaiato de Lisboa. “Estou
cá para tudo o que é preciso fazer! Há
15 anos que colaboro na educação dos rapazes
e naquilo que posso. Com a minha vida, adquiri muita experiência,
ao nível de lidar com a rapaziada e de conhecer,
digamos, as suas manhas. A rapaziada não é
fácil, mas há que saber lidar. O que eu
lhes procuro transmitir é que também eu
já tive a idade deles, também passei por
aquilo que eles estão a passar, sei o que eles
pensam de certas regras… é um ‘toque’
que ganhamos pelos muitos anos aqui passados”. Renato
acredita que a missão de um monitor é também
oferecer esperança de vida aos rapazes. “A
sociedade está hoje diferente. No meu tempo tínhamos
a ideia de arranjar uma profissão nas áreas
da eletricidade ou da construção; hoje,
os miúdos têm outra ideia e preferem mais
as tecnologias. Mas a base que nós, na Casa, procuramos
transmitir é a mesma: os rapazes têm de estudar
o máximo para arranjar um ofício, para poderem
sair da Casa do Gaiato, constituírem família
e serem autónomos”, afirma.
Sobre a sua história de vida, Renato não
sente complexos. Pelo contrário, assegura que procurar
integrar o filho na vida da Casa do Gaiato. “Ele
gosta de cá vir, brincar com os animais e com os
rapazes da Casa e ver onde o pai cresceu. A minha mulher
diz que eu o mimo demais, mas é normal, procuro
que não lhe falte nada e transmito os valores que
tive”, afiança, sublinhando sentir que o
seu percurso de vida “foi sempre acompanhado por
Deus”. “Não sou um praticante da Igreja
a cem por cento, mas em casa lemos sempre a oração
da noite em família”, termina.
A Casa do Gaiato de Lisboa é uma instituição
que foi assumida, em 2006, pelo Patriarcado de Lisboa,
e que vive exclusivamente dos donativos, dos mecenas e
da diocese, não havendo qualquer ajuda do Estado,
nem acordo com a Segurança Social. O padre Arsénio
Isidoro é o presidente da direção
desde o primeiro dia em que a instituição
passou a ser tutelada pelo Patriarcado e destaca, ao Jornal
VOZ DA VERDADE, o novo lema da Casa do Gaiato: ‘Casa
de família, para as famílias e pelas famílias’.
“Só há uma forma de nós sermos
recriados na vida, que é no amor. A família
é o lugar de restauro, de recuperação
do ser humano, numa atitude de compaixão, de misericórdia
para com alguém que chega num sofrimento de abandono,
de negligência, de corte de laços”,
frisa este sacerdote. Além dos rapazes que chegam
à Casa do Gaiato, a preocupação desta
instituição social diocesana começa
também a passar pela família. “Este
projeto de refundação, que começou
com o Sínodo Diocesano 2016, é para aplicar
a três anos e nós só vamos ainda em
seis meses dessa concretização, numa possibilidade
de acolher famílias em dificuldade”. Neste
sentido, destaca o padre Arsénio, “tem havido
uma reestruturação arquitetónica
de recuperação interior dos edifícios
que albergaram 150 rapazes e que estão agora a
ser transformados em moradias familiares”.
“A dignidade voltou”
Na Mensagem Quaresmal, o Cardeal-Patriarca de Lisboa,
D. Manuel Clemente, anunciava à diocese que a renúncia
quaresmal de 2015 no Patriarcado destinava-se “a
apoiar as instituições sociais diocesanas,
designadamente as que acompanham os mais novos, como a
Casa do Gaiato de Lisboa, ou pessoas sem-abrigo e fragilizadas,
como a Comunidade Vida e Paz”. Durante cerca de
meio ano, Luís Martins foi um sem-abrigo na periferia
da cidade de Lisboa. Começou a consumir heroína
em 1993, quando saiu da tropa e foi trabalhar para uma
empresa de segurança. “Quando dei por mim,
estava no meio do consumo. Sabia de um ou outro colega
que também consumia, mas depois já éramos
mais de 40 ou 50… Na altura era a primavera das
drogas, era tudo ‘muito bonito’, até
que deixou de ser primavera e começou a ser um
inverno torrencial. Isto durou 16, 17 anos, até
dar o ‘clique’ e eu dizer: ‘Basta! Chega!
Eu tenho que fazer algo por mim, eu não quero mais
isto’”, recorda Luís, ao Jornal VOZ
DA VERDADE.
Filho único, Luís tinha perdido tudo quando
chegou à rua. Estava divorciado de um primeiro
casamento e separado de um segundo, do qual tem um filho,
atualmente com 12 anos. “Tinha apenas os meus pais,
mas felizmente o meu pai, ao fim de muitos anos, fechou-me
a porta e obrigou-me a ‘deitar’ na cama que
eu próprio tinha feito. Se não fosse esse
‘empurrão’, se calhar hoje não
estava aqui. Porque um dos grandes problemas dos adictos
e das pessoas que consomem, não só droga
como álcool, é a família tentar sempre
apoiar e, coitados, sem saberem como – porque a
família é amor incondicional –, perceberem
tarde que a melhor ajuda é estar apenas para apanhar
os ‘cacos’”. Luís garante, pelo
seu testemunho, que a mudança de vida tem de partir
de cada um. “As famílias são apanhadas
no meio deste processo e, muitas vezes, nem sabem como
agir. Quando tenho oportunidade, digo sempre às
famílias para ficarem na retaguarda, porque a pessoa
tem de dar o seu passo. Não adianta ‘empurrar’
ninguém para a recuperação. A pessoa
tem que assumir para si que quer mudar de vida”,
garante.
Ao longo dos anos, Luís fez algumas paragens mas
nunca um tratamento. “O máximo que estive
sem consumir foi um ano, mas depois o ‘bichinho’
voltava”, assume. Quando decidiu deixar a droga
de vez, Luís tinha emprego num call center, mas
estava já a morar na rua há cerca de seis
meses, desde finais de 2009. “Os consumos já
não me permitiam estar em casa com a minha mulher.
Já não falava com os meus pais há
mais de dois anos, mas no dia de Páscoa de 2010
liguei ao meu pai que prontamente me fechou a porta. Eu
não queria aquela vida para mim. Andava a experimentar
abrir portas de prédios e dormia por lá,
fazia assaltos para pagar os consumos e ‘especializei-me’
em calças porque se vendiam bem, mas houve uma
manhã que acordei e decidi: ‘Luís,
não, chega, acabou. Eu não nasci para isto,
eu sou mais do que isto, eu tenho de fazer pela minha
vida, mas sozinho não consigo’”, descreve
Luís, hoje com 46 anos.
Na zona que Luís frequentava, havia uma carrinha
de troca de seringas e administração de
metadona. “Dirigi-me a essa carrinha e perguntei
o que tinha de fazer, hoje, já – porque como
bom adicto que sou as coisas têm de ser no imediato
–, para mudar. Responderam-me que tinha de fazer
exames, e aparecer lá novamente no dia seguinte
com esses exames feitos. Depois há uma sucessão
de coisas – que eu não lhe chamo coincidências
–, que me levaram finalmente a perceber que andava
Alguém comigo ao colo. Não era habitual,
nem normal, mas naquele dia estava uma pessoa da Comunidade
Vida e Paz na carrinha, que me apresentou a instituição
e a possibilidade de sair da rua naquele dia e ir para
um albergue, em Xabregas. Eu só pensava: ‘Como
vou a pé da Damaia para Xabregas?’ Na noite
anterior tinha ardido um chalé na zona e estava
um autocarro de 35 lugares para levar os desalojados para
Xabregas e lá fui eu, sempre pensando em mais esta
‘coincidência’. Hoje vejo que nunca
estive sozinho neste caminho, Alguém nunca me deixou
ter segundas doenças, nunca me deixou ir preso
e hoje faz-me estar aqui sentado”, relata. “Sou
católico, andei afastado de Deus muitos anos, porque
nunca fui aquele católico crente, mas há
qualquer coisa que me tem acompanhado estes anos e tem
andado comigo ao colo, porque de outra maneira não
consigo explicar a minha vida”, acrescenta Luís.
Luís Martins garante que “aquele foi o passo
número um para uma vida nova”. Falou, no
Espaço Aberto ao Diálogo, da Comunidade
Vida e Paz, com assistentes sociais, psicólogos,
técnicos de reinserção, e após
cerca de duas, três semanas iniciou então
o tratamento no centro de Fátima da instituição,
no dia 27 de abril de 2010. “O tratamento da Comunidade
Vida e Paz é um tratamento de um ano, com um programa
composto por quatro fases: adaptação, admissão,
responsabilização e reinserção”,
explica Luís, lembrando “que é como
as quatro estações do ano: cada uma tem
a sua particularidade”. Luís garante que,
hoje, olha para trás, e vê que “o tratamento
foi muito fácil”. “O meu querer era
tanto, que não tive problemas nenhuns”, assegura.
A relação com os pais foi restabelecida
durante o tratamento, em finais de 2010. “Os meus
pais sempre souberam que eu estava em recuperação.
No meu dia de anos, a 1 de agosto, sei que a minha mãe
ligou para a centro a dar-me os parabéns, mas não
falou comigo. No dia de anos do meu pai, a 24 de novembro,
telefonei e dei-lhe os parabéns… e antes
do Natal, eles foram a Fátima visitar-me”,
conta, emocionado. “Foi o primeiro abraço
que eu dei na vida ao meu pai”, relata, sublinhando
que “a confiança que estava perdida por completo
foi sendo ganha” e que hoje tem “uma relação
normalíssima” com os pais, que vivem agora
nas Caldas da Rainha.
Quando acabou o tratamento, Luís tinha já
emprego assegurado numa empresa de limpezas em Leiria,
mas dentro de si nascia um desejo. “O que eu queria
mesmo era trabalhar com a Comunidade Vida e Paz. Com a
minha presença e testemunho, queria ajudar e mostrar
que é possível mudar de vida”. O desejo
concretizou-se dois meses depois, em julho de 2011, e
Luís trabalhou dois anos na instituição,
com contrato de trabalho. Desde há pouco menos
de dois anos que Luís Martins trabalha na Cáritas
Diocesana de Lisboa, numa missão em que ‘faz
tudo’. Constituiu uma nova família, com uma
psicóloga do Espaço Aberto ao Diálogo,
e mantém uma colaboração, agora voluntária,
com a Comunidade Vida e Paz, sendo neste momento coordenador
de uma das equipas de rua desta instituição
do Patriarcado de Lisboa. Uma noite de quinze em quinze
dias, Luís percorre parte da cidade procurando
transmitir esperança aos sem-abrigo. “Olho
para o meu passado no sentido de testemunho, com muita
responsabilidade e sem culpa. Uma das coisas que prejudica
o avançar é o sentimento de culpa. Eu sou
responsável pelas coisas que fiz e estou a pagar
os erros que cometi, naquela altura e naquele contexto.
Hoje, acredito, a dignidade voltou”.
texto por Diogo Paiva Brandão;
foto por Filipe Teixeira
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