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É difícil, quase impossível,
escrever sobre Belém. Porque, perante esta história
de um Deus que se faz menino numa gruta, os descrentes
dizem que é uma linda fábula e os crentes
vivem-na como se o fosse. Diante deste começo da
grande loucura, uns defendem-se com a sua incredulidade,
outros com toneladas de açúcar.
Deus é como o sol: agradável,
enquanto estamos suficientemente longe d’Ele para
aproveitar o seu calor e evitar queimaduras, mas, quem
suportaria a proximidade do sol? Quem pode resistir a
este Deus que “sai de sua casa” e se mete
na vida dos homens? E só pode o homem abeirar-se
d’Ele pela porta da simplicidade. Belém é
um lugar não apto para grandes: uma autêntica
festa de loucos.
“Enquanto ali se encontravam,
chegou o dia de ela dar à luz e teve o seu filho
primogénito. Envolveu-O em panos e deitou-O numa
manjedoura.” (Lucas 2, 6-7)
Ali estava. Maria e José olhavam
para Ele e nada entendiam. Era “aquele bebé”
o que o anjo anunciara e o que durante séculos
havia esperado? Adoravam-n’O, mas não O entendiam.
Aquele bebé era o enviado para salvar o mundo?
Deus era omnipotente, o menino, só fraqueza. O
Filho esperado era a Palavra, aquele bebé não
sabia falar. O Messias era “o caminho”, mas
este não sabia andar. Era o criador do sol, mas
tiritava de frio e precisava do bafo de um boi e de uma
mula. Cobrira os campos de erva, mas agora estava nu.
Não, não entendiam. Como podiam entendêl’O?
Maria olhava e olhava para Ele, como se o segredo estivesse
escondido debaixo da pele ou atrás dos olhos. Mas,
debaixo da pele, havia só uma carne mais débil
que a pele, e, atrás dos olhos, só havia
lágrimas, as pequeninas lágrimas de recém-nascido.
Sua cabeça de jovem enchia-se de perguntas para
as quais não encontrava respostas: se Deus queria
descer ao mundo, porquê vir por esta porta traseira
da pobreza? Se vinha salvar a todos, porque nascia nesta
imensa solidão? E sobretudo, porque a tinham escolhido
a Ela, a mais débil, a menos importante das mulheres
de Israel?
Não entendia nada, mas acreditava,
sim. Como ia Ela saber mais do que Deus? Quem era Ela,
para julgar os seus misteriosos caminhos? Além
disso, o menino estava ali, como uma torrente de alegria,
infinitamente mais verdadeiro que qualquer outra resposta.
Porque, finalmente, nenhum outro milagre
espectacular tinha acompanhado este puríssimo parto.
Nem anjos, nem luzes. Deus reservava os seus anjos agora
para quem precisava, os pastores.
E, no entanto, aquele bebé, que
ia começar a chorar de um momento para o outro,
era Deus, era a plenitude de Deus. E tinha-se feito homem,
homem perfeito. O mundo, que esperava de seus lábios
a grande revelação, recebeu, como primeira
palavra, um sorriso e o estalido de uma bolha em seus
lábios rosados. Esta era, na verdade, a sua grande
palavra! Quem teria acreditado neste menino-Deus se tivesse
aberto os seus lábios no berço, para nos
explicar que Deus era uno em essência e trino em
pessoas? O não saber falar era a prova definitiva
de que se tinha feito inteiramente homem, de que aceitara
toda a nossa humanidade, tão pobre e débil
como é. A sua grande revelação não
era uma formulação teológica, nem
um altíssimo silogismo, mas a certeza de que Deus
nos ama, de que o homem não foi abandonado à
deriva, após o pecado. Descobríamos, finalmente,
visivelmente, que não estamos sós! Deus
era amor. E sendo-o, como não entender que aparecesse
em forma de bebé? O reinado da loucura tinha começado.
Esta loucura, como é lógico,
tinha que escandalizar os “inteligentes”.
Mas o Deus verdadeiro é este bebé, envolto
nos mais humildes panos, nascido na maior das pobrezas.
Porque é que a riqueza havia de ser mais digna
de Deus do que a humilde simplicidade dos pobres? Já
o disse: naquela noite, instaurava-se o reinado da loucura.
O bebé do presépio trazia uma nova moeda
para avaliar as coisas: o amor. Sabia bem que ninguém
acabaria por aceitar totalmente esta moeda nova (seu nascimento
numa gruta era já uma demonstração);
mas nem por isso seria menos verdadeiro que o amor seria
o único verdadeiro valor.
Era-o. Maria sabia-o, embora o não
entendesse. Por isso olhava-O e reolhava-O; por isso,
abraçava-O, com medo de O aleijar; por isso cantava;
por isso ria; por isso rezava; por isso se lhe enchiam
os olhos de lágrimas.
Só Maria entenderá esta
noite, formosa mais que a aurora. Esta noite em que o
Sol eterno pareceu eclipsar-se na carne de um bebé,
para se mostrar mais plenamente como puro amor. Mas o
mundo estava demasiado ocupado na sua podridão,
para descobrir uma alegria tão grande.
José Luis Martin Descalzo
José Luís Martin
Descalzo
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