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Todos temos desilusões na vida:
com amigos, clube de futebol, partido político,
ideais e sonhos... Aconteceu-me também com José
Saramago, que admiro como ficcionista. Com as descobertas
linguísticas dos séculos XVIII-XX já
não se lêem textos sem os contextos e hipertextos,
as pequenas narrativas sem as macronarrativas. A Bíblia
das escrituras hebraicas (Antigo Testamento com 46 livros)
e gregas (Novo Testamento com 27 livros) oferecem-nos
um Código de vida dependente da fé em Deus,
composto ao longo de dois séculos (AT) e de um
século (NT).
Ler a Bíblia é um desafio para qualquer
pessoa, mais letrado ou menos letrado, crente ou descrente.
É um Livro de livros, com narrativas esplêndidas,
umas, aborrecidas - muito aborrecidas -, outras. Mas quem
estudar o texto no seu contexto acaba por se apaixonar,
até os não crentes. E foi com toda esta
boa disposição que, entre outros de José
Saramago, li também o Evangelho Segundo Jesus Cristo
e, agora, o Caim. Quem gosta de literatura gosta de imagens,
metáforas, analepses e prolepses, narrativas de
idealismos míticos e messiânicos, de paixões
humanas, de mundos de Deus e do Diabo, de esperança
e desespero. Na Bíblia está tudo. E, a nível
literário, José Saramago é um “mago”
de imagens e metáforas (Harold Bloom dixit).
E foi por tudo isto que aceitei o repto da SIC para me
encontrar com o Prémio Nobel da literatura. E a desilusão
aconteceu. Nunca pensei que um Prémio Nobel da Literatura,
mesmo ateu confesso e militante, folheasse as narrativas
bíblicas de maneira literalista e fundamentalista.
Saramago respiga, na Bíblia, os textos mais “escandalosos”,
que têm Deus por autor, e classifica esse Deus de
“filho da p...” (p. 82), sanguinário,
colérico, absolutamente mau. A Bíblia é
um “manual de maus costumes...”
E os milhões de judeus e cristãos que nela
depositam confiança, o que são? E os milhares
de exegetas bíblicos, que queimam as pestanas de
noite e de dia, a estudá-la, o que são?
E as Bibliotecas, de centenas de milhares de livros sobre
a Bíblia, ou as dezenas de Revistas científicas
dedicadas à Bíblia, em todas as línguas,
o que significam? E porque é que a Bíblia
continua a ser o best-seller de todos os livros e a inspiração
para grandes romancistas, artistas, igrejas e catedrais?
Sempre pensei que o encontro de José Saramago com
o Prof. Tolentino Mendonça e comigo o convencesse
a mudar de agulha. Nada. O Deus da Bíblia é
o Deus daquela letra e nada mais. Como classificar, então,
o livro Caim? Saramago começa mal ao apresentar
os dois irmãos, Caim e Abel. Põe Abel a
louvarinhar-se a si próprio desafiando semanas
seguidas o seu irmão Caim pelo facto do “senhor”
(Deus) aceitar as suas oferendas e rejeitar as do irmão
(p. 36s). Mas o texto bíblico (Génesis 4,
3-8) oferece-nos um Abel que nunca abre a boca. É
um pastor que apresenta as suas ofertas a Deus, aceites
por Deus, e que é morto por Caim, chateado - este,
sim - com Deus por não aceitar também as
suas ofertas. Nada mais.
A partir daqui, Caim sente-se amaldiçoado por Deus,
e leva uma vida errante, merecedor de ser também
morto, mas Deus não consente e, por isso, coloca-lhe
na testa um sinal de defesa mortal. Nesta errância
geográfica, Saramago é um excelente ficcionista
em todos os anacronismos caínicos: Caim encontra-se
com Abraão, Moisés, Josué, Noé,
Job e demais personagens bíblicas. São personagens
trágicas “manipuladas” por um “senhor”
(Deus) trágico e sádico que obriga Abraão
a sacrificar o seu próprio filho, as cidades de
Sodoma e Gomorra a desaparecer num fogo divino sem poupar
as crianças, Lot a ser embebedado pelas duas filhas
para, através de incesto, ficarem grávidas
do pai. Josué vai conquistando os cananeus por
obra e graça do senhor guerreiro (Deus), que impõe
a lei do herem (anátema) a todos os inimigos conquistados:
matar gados, homens, mulheres e crianças, despojos
de guerra.
Mas regressemos à substância do tema: saber
ler o texto no seu contexto. (…)Sobre Caim e Abel,
o livro de Génesis oferece-nos vinte e quatro versículos
e não apenas os nove de Saramago. Sem este contexto
não entendemos nada de Caim. No versículo
17 lemos: “Caim conheceu a sua mulher. Ela concebeu
e deu à luz Henoc. E começou, depois, a
edificar uma cidade, à qual deu o nome do seu filho
Henoc”. Um dos descendentes de Caim foi Tubal-Caim
(4, 22), pai daqueles que fabricavam todos os instrumentos
de cobre e ferro”. Quem é, então,
o Caim da Bíblia? Não é um indivíduo
mas o epónimo de uma cultura e civilização
– a das cidades -, muito mal vista por um fio condutor
e transversal a toda a Bíblia do AT, que opõe
a cultura e civilização dos pastores (Abel)
à das cidades.(…)
É assim tão difícil ler o texto no
seu contexto? A pequena narrativa na grande narrativa?
José Saramago terminou, na SIC, por dizer: “Na
Carta das Nações Unidas falta a enunciação
de dois direitos: “o direito à dissensão
e à heresia”. Se por dissensão entendemos
o direito à diferença, política ou
religiosa, já lá está, e quanto à
heresia, como me pronunciei então, José Saramago
pode ficar totalmente em paz porque só é herege
quem é crente.
Padre Joaquim Carreira das
Neves, Teólogo
Artigo (parte) publicado no Jornal Expresso de 31 de
Outubro 2009
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