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1. Quando se completam trinta anos do meu ministério
episcopal ao serviço da Igreja de Lisboa, os últimos
dez como Patriarca, resolvi escrever-vos esta Carta, talvez
inspirado pelo Apóstolo Paulo, de quem vamos celebrar
os 2000 anos de nascimento e que escrevia frequentemente
cartas às Igrejas nascidas do seu ministério
apostólico. Nela, quero falar-vos da nossa Igreja
diocesana, como eu a vejo, como eu a desejo, como eu a
amo, na firme certeza de que é o Senhor, através
do Seu Espírito, quem a ama e constrói,
através do nosso ministério e da fidelidade
de todos os cristãos.
Porque estamos já em ambiente do “Ano Paulino”,
permiti que vos saúde como Paulo saudava as Igrejas
no início das suas Cartas: “Paulo, Apóstolo
de Jesus Cristo pela vontade de Deus, e o irmão
Timóteo, à Igreja de Deus, que está
em Corinto, e também a todos os cristãos
que se encontram por toda a Acaia. A graça e a
paz vos sejam dadas da parte de Deus nosso Pai e do Senhor
Jesus Cristo” (2Co. 1,1-2). E como Paulo saúda
os cristãos de Corinto também em nome de
Timóteo, seu colaborador, muito estimado por aquela
comunidade, saúdo-vos também em nome dos
Senhores Bispos Auxiliares, que comigo exercem o ministério
episcopal, para bem desta Igreja. Saudamos todos os sacerdotes,
os diáconos, os religiosos e religiosas, os cristãos
leigos, espalhados nesta vasta Diocese, de Lisboa a Alcobaça,
da Azambuja a Torres Vedras, de Cascais à Nazaré.
Saúdo com particular ternura as famílias,
as crianças, os jovens, os doentes e todos aqueles
que sofrem bem como os que chegaram ao ocaso da vida,
que dão testemunho de coragem e de esperança.
Saúdo, as nossas irmãs mulheres, que são
chamadas a ser, na Igreja, a expressão da principal
novidade do Evangelho: a primazia absoluta do amor sobre
a lógica das situações e das conveniências.
O Concílio Vaticano II
também aconteceu para nós
2. Iniciei o meu ministério sacerdotal nesta Diocese,
pelas mãos do saudoso Cardeal Cerejeira, em pleno
entusiasmo da renovação conciliar. Havia
dois anos, o Papa João XXIII surpreendera a Igreja
com a convocação de um Concílio Ecuménico.
Eram passados quase cem anos do encerramento precipitado
do último, interrompido bruscamente pelas mutações
sociais e políticas em Roma e em toda a Itália.
Na Basílica de São Paulo fora de Muros,
no dia 25 de Janeiro de 1959, Festa da Conversão
de São Paulo, o Papa explicou as razões
da sua decisão: o mundo mudou; a Igreja, para continuar
a ser fiel à sua missão de enviada ao mundo,
como mensageira da salvação, precisa de
mudar, de se adaptar às exigências dessa
missão. O desafio à mudança aparece
como exigência da fidelidade da Igreja. “Aggiornamento”,
o pôr-se em dia para a missão, tornou-se
a palavra de ordem.
Foi uma ousadia corajosa convidar a Igreja à mudança.
Mas, afinal, a Igreja também pode mudar? Tanto
na Igreja, como na sociedade, quando os acontecimentos
marcantes convidam à mudança, desencadeiam-se
processos históricos incontornáveis: uns
querem mudar rapidamente aquilo com que não concordam,
e lançam-se em aventuras de cariz revolucionário,
do mudar por mudar, em que a mudança é a
única coisa que interessa; outros procuram generosamente
intuir o futuro das instituições, redescobrir
a sua verdade profunda, porque está em questão
o futuro do homem e da humanidade.
Isto também aconteceu na Igreja. Enquanto a Assembleia
Conciliar rezava e trabalhava para perceber, à
luz da Fé e da Tradição, esse novo
rosto da Igreja, preparada para a missão, para
ser enviada de novo, muitos, por toda a parte, entusiasmados
com esse ambiente de mudança, lançaram-se
numa “euforia conciliar”, em que era legítimo
tudo mudar em nome do Concílio, talvez sem nunca
terem escutado os ensinamentos conciliares, esse monumento,
belo e harmonioso, de doutrina e desafios pastorais, dos
mais notáveis que a Igreja produziu em toda a sua
história.
Este duplo dinamismo, melhor, esta maneira diferente
de entender o convite à mudança, está
ainda hoje na origem de muitos problemas na Igreja. Os
que não perceberam que a mudança era exigida
pela fidelidade à missão, que é manifestação
de fé na Igreja e no Espírito que a conduz,
quiseram mudar por mudar, ao sabor de visões subjectivas
e provocaram tensões, e levaram outros à
tentação de regressar aos tempos antes do
Concílio, como se todo ele tivesse sido uma aventura.
Por outro lado, a Igreja, conduzida pelos seus pastores,
à cabeça dos quais está o Sucessor
de Pedro, procuraram, bebendo na verdadeira fonte os ensinamentos
conciliares, conduzir a Igreja à necessária
e sólida mudança para a missão.
3. Todos estes ventos conciliares agitaram, também,
a Igreja de Lisboa. Senti-os na carne, porque vivi, durante
meio século, esta busca da fidelidade em tempos
de mudança, na Igreja e na sociedade. Esta acelerou
o ritmo das mudanças e a essa aceleração
da mudança a Igreja não pode responder caso
a caso, sector a sector. A Igreja não muda porque
o mundo muda; a Igreja muda para poder ser mensageira
da esperança num mundo em mudança. Este
não lhe é indiferente, pode mesmo sugerir-lhe,
no ritmo alucinante da aventura humana, sinais para a
adaptação da Igreja à sua missão.
Foi o desafio lançado a toda a Igreja pelo Concílio,
saber discernir, na actual aventura humana, “sinais
dos tempos”, sugestões à mudança
na Igreja, exigida pela missão.
Quero dizer claramente à Igreja de Lisboa que
não mudamos por mudar, mas que protagonizaremos
e apoiaremos todas as mudanças, compatíveis
com a fé que recebemos dos Apóstolos, e
que sejam exigidas pela missão, pelo serviço
da Igreja à sociedade, em nome de Jesus Cristo.
Não vemos que o caminho sugerido pelo Espírito
seja, em nenhum aspecto, um regresso ao antes do Concílio,
mas sim continuar a aprofundar os seus ensinamentos, completados
e iluminados pelo Magistério posterior, para sermos
fiéis, hoje, à renovação exigida
à Igreja pela complexidade do mundo. A intuição
de João XXIII, em 1959, ao convocar o Concílio,
mantém uma actualidade impressionante: o mundo
mudou, continua a mudar, e a Igreja precisa de estar atenta
às mudanças dentro dela própria,
sugerida pela sua missão no mundo. A Igreja não
copia as mudanças do mundo, por vezes tem mesmo
de denunciá-las: só a sua verdade interna
e o imperativo da sua missão a podem fazer mudar.
O mundo mudou
4. A mudança do mundo a que João XXIII
foi sensível aprofundou-se e acelerou. A Gaudium
et Spes assumiu-o claramente: “verificam-se transformações
profundas nos nossos dias, nas estruturas e nas instituições
dos povos, que acompanham a sua evolução
cultural, económica e social” (G.S. nº
73). Meio século depois, os efeitos da mudança
contínua alteraram o rosto da comunidade humana,
mudaram os valores das civilizações e traçaram
um novo quadro para o sentido da vida, individual e colectiva.
E os cristãos não ficaram imunes a esta
transformação. Mudaram ao ritmo da sociedade,
encontrando, em geral, a chave da interpretação
da vida e da história na mudança da sociedade
e não no Evangelho e na fé como fonte de
uma compreensão global da existência. Tudo
isto levou progressivamente a uma ruptura entre a religiosidade
praticada e o sentido ético que inspira os comportamentos
pessoais e fornece os critérios da busca do sentido,
do discernimento dos acontecimentos e da história.
A Igreja, pela mudança global e pela mudança
interna com critérios culturais profanos, foi perdendo
espaço na sociedade como principal fonte inspiradora
de valores da humanidade. Ao contrário, a sua palavra
e doutrina é frequentemente vista com desconfiança
ou mesmo rejeitada por uma sociedade que considera ter
encontrado a sua autonomia na construção
da verdade.
Neste quadro, de pouco servem à Igreja, na realização
da sua missão no mundo, lutas frontais com poderes
estabelecidos ou outras compreensões estruturadas
da sociedade. Tais reacções da Igreja não
estão isentas do que resta de uma lógica
de poder na sociedade. Ela não pode cruzar os braços
e renunciar à sua mensagem, mas deve fazê-lo
por outro caminho: o da fidelidade interna a Jesus Cristo
e ao Seu Evangelho e o do serviço à sociedade,
à pessoa humana, suscitando pelo amor e pelo serviço,
as sementes de esperança que ainda não morreram
no coração dos homens. A autenticidade do
seu serviço à humanidade deve impor-se por
si, e não por mera lógica de poder.
A mutação cultural
5. Todas estas profundas alterações na
comunidade humana se repercutem na cultura, concebida
esta como sabedoria, isto é, como quadro de princípios
e de intuições, que se constrói,
não no plano de cada indivíduo, mas ao nível
das comunidades, e que inspira espontaneamente a evolução
das sociedades e o exercício individual da liberdade.
É um erro considerar a fé cristã
como uma atitude estritamente individual. Quer no seu
dinamismo interno, quer na sua missão no mundo,
a Igreja situa-se necessariamente num quadro cultural.
Há uma relação inevitável
entre cristianismo e cultura: a experiência cristã
veicula uma antropologia, propõe uma vivência
humana que acentua valores fundamentais de humanidade,
constitutivos da cultura. Esta é a experiência
de 2000 anos: a fé cristã transformou-se
em cultura, encontrou convergências entre os seus
valores e os de outras culturas, foi elemento importante
de mutação cultural, porque as culturas
podem mudar ao ritmo da mutação das sociedades.
Na acelerada mutação cultural do nosso
tempo, a Igreja pode ser vítima ou interveniente
activo, se não permanecer numa atitude fixista
e intransigente sobre a cultura, mas lutar conscientemente
pela presença da dimensão cristã
na evolução da cultura que hoje se processa
e se decide ao nível do todo da sociedade, cada
vez mais plural e mais interdependente de outras culturas,
em horizonte global. Sem descurar a importância
do diálogo inter-cultural e da participação
no debate cultural, é sobretudo através
da autenticidade do testemunho cristão das opções
de vida, em tudo, mas sobretudo acerca das grandes questões
hoje em debate, que a Igreja se torna elemento activo
e interveniente no processo dinâmico da evolução
cultural. Sem a radicalidade evangélica autêntica
da vida, a Igreja será, sobretudo, vítima
da mutação cultural. Só isso lhe
dará autoridade para, no inevitável debate
cultural, afirmar a diferença de modo a interpelar
e rasgar novos horizontes de esperança.
As grandes questões em
debate na mutação cultural
6. Verifica-se que as grandes questões em debate
na evolução cultural dos últimos
dois séculos, sobretudo no Ocidente, são
aquelas em que a Igreja marcou a sua influência
cultural, o que faz aparecer as alterações
culturais como uma luta contra a Igreja e a sua marca
decisiva na cultura. Não nego que por vezes o tenha
sido, mas é também preciso reconhecer que
muitas vezes a Igreja lidou mal com a evolução
cultural.
Essas grandes questões andam à volta do
homem e da sua dignidade, da sua relação
com Deus, da autonomia da sua razão como caminho
de verdade, do carácter absoluto da sua liberdade,
em todas as suas expressões. Ao desenvolver os
direitos da liberdade, caiu-se numa dimensão individualista
do homem, relativizando a sua inevitável dimensão
dialogal e comunitária, único quadro em
que se podem compatibilizar liberdade e responsabilidade
para com os outros.
A esse triunfalismo da razão, única fonte
da verdade, chamou-se modernidade, o que levou à
alteração da maneira de compreender e assumir
a relação do homem com Deus. Este começou
por ser combatido e negado, em nome da autonomia do homem
e acabou por ser circunscrito a um espaço de inutilidade,
porque não decisivamente interveniente na vida
do homem e da sua história. Este Deus “inútil”
daqueles que, mesmo admitindo que Ele existe, vivem como
se não existisse, é um estádio da
evolução cultural mais grave do que o ateísmo
racional e militante.
Retirado Deus da vida do homem, em termos culturais,
este ficou dependente de si mesmo, da sua inteligência,
da sua liberdade, da sua criatividade e perdeu algo de
muito importante na auto-compreensão de si mesmo,
que é a consciência da sua precariedade e
incapacidade. O poder do homem não é absoluto,
no seu coração coexistem o desejo do bem
e a inclinação para o mal e para vencer
o mal e realizar o bem que deseja, o homem precisa da
força do Alto e da ajuda dos irmãos, em
comunidade.
Quando o homem rejeitou a exigência de viver a
sua vida com Deus, sem medo de que Este lhe atrofie a
razão e diminua a liberdade, perdeu, pouco a pouco,
o horizonte de transcendência e de eternidade da
sua própria existência. A vida neste mundo
valer por si, vale o que vale, mas não é
concebida como um aprender a saborear a beleza e a plenitude
da vida.
A absolutização da liberdade individual
levou ao relativismo ético. Cada um decide a orientação
da sua vida, o que é bem e o que é mal,
progressivamente insensível aos valores de uma
cultura comunitária. A chamada “post-modernidade”,
afirmação radical da perspectiva individual
no domínio ético e da precariedade do presente,
deixou de ser cultura e transformou-se em anti-cultura.
A maneira de estar da Igreja na
mutação cultural
7. Antes de mais, a Igreja tem de assumir claramente
que não coincide com a sociedade, embora, entre
nós, o elevado número de baptizados não
praticantes ou, porventura, não crentes, possa
ainda alimentar essa confusão. Isso não
deve levar os cristãos a relativizar a sua pertença
à sociedade e a empenhar-se, com todos os outros,
na construção de uma sociedade mais digna
do homem, reconhecendo-se como força significativa
de humanização da sociedade. Os cristãos
são membros de duas cidades, o Povo de Deus e a
Cidade dos homens, cuja densidade se cruza na busca da
transformação da sociedade.
Só porque a sociedade não se identifica
com a Igreja, esta não pode ser condenada no seu
todo; deve aprender-se a reconhecer os caminhos de bem,
objecto das mais nobres lutas da humanidade: a busca da
paz, a procura da justiça, a afirmação
da dignidade do homem, a defesa da vida humana, a solidariedade
como expressão da convivência fraterna, a
defesa da natureza. São tomadas de consciência
colectiva, sinal positivo da evolução da
cultura, com as quais a Igreja se identifica e em cuja
luta pode participar, acrescentando-lhe, porventura, como
contributo específico, a radicalidade do Evangelho
e de toda a Palavra de Deus. Este quadro de valores constitui
um “universal humano” que se tem vindo a afirmar
na própria evolução da humanidade,
o melhor fruto da transformação cultural,
e que a Igreja assume como expressões do seu universo
ético. Eles não são, necessariamente,
valores religiosos, mas valores humanos que o cristianismo
sempre propôs e cultivou.
Esta visão clara do rosto positivo da sociedade
levará a Igreja a ter uma consciência clara
de dinamismos e realidades que na sociedade contemporânea
são contra o homem: a violência e a guerra
escolhidos conscientemente como caminhos para alcançar
certos objectivos; os egoísmos e a primazia do
lucro nos processos de desenvolvimento económico;
a relativização da consciência moral;
o relativismo da verdade; a alteração dos
modelos de felicidade, marcada pelo hedonismo, o consumismo
e a incapacidade de integrar as dificuldades e o sofrimento.
Porque não coincide com a sociedade, a Igreja
tem de aprender a viver numa sociedade que não
se identifica com ela. A Igreja deve anunciar a esperança
e marcar a diferença pela maneira como vive. Ela
não domina a sociedade, mas acredita que pode ajudar
a transformá-la. Não pode esquecer que as
sociedades democráticas e pluralistas, como a nossa,
se organizam a partir da evolução cultural
que descrevemos.
A Igreja deve afirmar-se pela força do seu testemunho
e pela qualidade do seu serviço. É através
da Igreja que resplandece, para toda a sociedade, a verdade
do Evangelho e do Senhor Jesus Cristo como resposta para
todas as buscas e inquietações do homem.
Homem divino ou Deus humanizado, Cristo é o testemunho
vivo de que o homem não encontrará a plenitude
sem Deus e de que Ele é um Deus connosco, a caminhar
connosco na luta da vida. A Igreja deve ser o testemunho
vivo de que Deus não ofusca a grandeza e a dignidade
do homem, não diminui a sua liberdade, nem põe
em questão o seu direito de procurar a verdade.
A vivência cristã autêntica testemunha
que só com a força de Deus o homem pode
desenvolver todas as suas capacidades de busca da verdade,
de exercício da sua liberdade, de construção
da sua felicidade, porque em Jesus Cristo Deus manifestou-Se
como aliado do homem, com um amor infinito.
O natural e o sobrenatural
8. Com a negação ou relativização
de Deus na vida, na busca da verdade e no exercício
da liberdade, o homem fica reduzido às suas capacidades
naturais. Da evolução cultural já
descrita, faz parte uma euforia por tudo o que é
capacidade da natureza, aliás melhor conhecida
através do progresso da ciência. Tudo o que
é natural é bom e, portanto, legítimo.
É um facto que a natureza é bela, dotada
de capacidades maravilhosas. À luz da nossa fé
em Deus criador, essa beleza da natureza é indesligável
da maravilha de Deus. Toda a natureza, em nós e
à nossa volta, proclama as maravilhas de Deus criador.
Só Ele, agindo connosco, nos pode ajudar a levar
à plenitude todas essas capacidades naturais.
Mas é também um facto que a natureza ficou
ferida pelo pecado do homem, mais uma manifestação
da unidade profunda entre o homem e a criação,
para o bem e para o mal. E nesse quadro de desvio e de
decadência, só com a graça redentora
de Jesus Cristo o homem pode viver plenamente os dons
naturais de que foi dotado por Deus criador. Este ensinamento
é já claro na Carta do Apóstolo Paulo
aos Romanos: “A criação também
será liberta da escravidão da corrupção
para participar da liberdade e da glória dos filhos
de Deus” (Rom. 8,21). A compreensão da existência
cristã é essa: só com a acção
do Espírito de Jesus ressuscitado, o homem pode
viver plenamente as suas capacidades naturais, de amar,
de criar e construir, de buscar a verdade, de viver o
presente, sabendo que está já a construir
o futuro, pleno e definitivo. Ser discípulo de
Cristo é viver com Ele, pôr em prática,
momento a momento, esta interacção de eus
e do homem na realização da vida e da felicidade.
É por isso que a Igreja, na sua acção
pastoral, dá uma prioridade absoluta a esta intervenção
de Deus na nossa vida, dons sobrenaturais que levam à
plenitude dos dons naturais.
Esta complementaridade entre a ordem natural e a sobrenatural
está a desaparecer da cultura envolvente, mesmo
entre alguns cristãos. Esquecemos a afirmação
de Cristo: sem Mim nada podereis (cf. Jo. 15,5). A abertura
à acção de Deus, na vida pessoal
e comunitária, é componente essencial de
uma cultura cristã. Desconhecê-la ou desvalorizá-la
é introduzir na visão cristã do homem
elementos da cultura profana.
A Igreja também mudou
9. Neste meio século decorrido depois do Concílio
Vaticano II, a Igreja também mudou. Trata-se de
saber se mudou bem e se mudou o suficiente, naquilo que
era exigido pelo exercício da sua missão
neste mundo em mudança acelerada.
As grandes transformações no rosto visível
da Igreja têm a sua origem no espírito de
renovação proposto pelo Concílio,
cuja visão da Igreja, embora tendo em conta as
características e os problemas do mundo contemporâneos,
se inspira especialmente na Igreja apostólica e
do primeiro milénio do cristianismo. A modernidade
levou a Igreja a um regresso às fontes, sugerindo
assim o caminho a seguir para se transformar para a missão.
Só regressando ao seu mistério a Igreja
encontrará a forma, a força e a linguagem
para anunciar ao mundo de hoje, o Evangelho da esperança.
A inculturação, na Igreja, não pode
significar, para ela, a perda do seu mistério,
do vigor da sua fé, valores que a cultura secularizada
perdeu. Inculturação só pode significar
melhor conhecimento dos homens aos quais anuncia a salvação,
esforço de proximidade amorosa, sem o qual a Igreja
se distancia inevitavelmente.
Mas houve mudanças na Igreja que significaram
cedência ao espírito do mundo. Adoptar, para
estar próxima dos homens, os critérios do
mundo é, para a Igreja, o caminho menos indicado
para mudar ao ritmo das exigências da missão.
E a sociedade pressiona-a continuamente a mudanças
segundo as exigências da cultura secularizada: casamento
dos padres, ordenação de mulheres, aceitação
de segundos casamentos, etc. E há, hoje, dentro
da Igreja, vozes a exigir essas e outras mudanças,
sob pressão da cultura envolvente. Essas ou outras
grandes mudanças só poderiam acontecer na
Igreja, ao ritmo do Espírito, porque o Senhor,
que dirige a Igreja, a desafiava a mudar para anunciar
melhor a mensagem de salvação. Em tudo,
mesmo na mudança, a Igreja é chamada a agir
com critérios de fé, ouvindo a Palavra de
Deus, escutando o Magistério e fiel à Tradição
contínua da Igreja ao longo de 2000 anos de confronto
com as mais variadas situações humanas.
Mas esta rejeição da mudança por
motivações profanas da cultura envolvente,
não deve significar, para a Igreja, a recusa de
toda e qualquer mudança. Ela é exigida pela
natureza da sua missão, foi sugerida pelo Concílio
Vaticano II, continuamente lembrada pelos Papas de então
para cá. A Igreja de Lisboa tem o direito de escutar
do seu Pastor orientações claras dos caminhos
da missão, nestes tempos exigentes para a sociedade
e para a própria Igreja.
Prioridade clara aos meios sobrenaturais
da graça
10. A Igreja é um Povo de crentes. Pertencem a
ela aqueles e aquelas que acreditam em Cristo morto e
ressuscitado, se uniram a Ele e com Ele querem viver a
vida. A fé é a atitude constitutiva da Igreja,
por ela nos deixamos possuir por Jesus Cristo, acreditando
que Ele nos enriquece continuamente com a força
transformadora do Seu Espírito, que nos fez renascer
e nos faz viver a vida nova. Todo o dinamismo da Igreja,
de mudança e transformação, de anúncio
e de evangelização, de caridade fraterna,
de comportamentos dignos de Jesus Cristo, de diálogo
e convivência com toda a sociedade, tem a sua motivação
na fé, só pode ser inspirado pela fé.
A acção transformadora do Espírito
realiza-se, na Igreja, através do seu poder sacramental,
ou seja, a capacidade que lhe foi dada por Jesus Cristo
de, através da sua acção, realizar
o poder transformador do próprio Deus. Na Igreja
os instrumentos da acção do Espírito
são a Palavra de Deus, continuamente proclamada;
os sete sacramentos; os sacramentais. A esta acção
de Deus, a Igreja e cada cristão respondem adorando
e vivendo segundo a vontade do Senhor, dando glória
a Deus em tudo o que são e fazem.
Para responder a uma cultura imanentista, em que o homem
decide o seu caminho e conta só com as forças
humanas, pessoais e sociais, a nossa acção
pastoral tem de dar prioridade a estes meios da graça,
em que nos abrimos à acção de Deus
em nós. Fazê-lo é acreditar que a
renovação da Igreja que procuramos e à
qual dedicámos as nossas vidas, não é
o efeito da nossa acção humana, mas obra
maravilhosa de Deus, que ama e conduz o Seu Povo.
Esta prioridade pastoral aos meios sobrenaturais da graça
exige, porventura, correcções de rota. Foram,
sobretudo, elementos da cultura ambiente que influenciaram
as alterações na prática sacramental.
Para além do abandono dos sacramentos, mesmo na
maneira de os celebrar introduziram-se elementos humanos,
que não ajudam a vivê-los como momentos da
acção de Deus em nós, e lhe enfraquecem
a densidade sobrenatural do encontro do homem com Deus.
A Palavra de Deus
10. Não sendo um dos sete sinais sacramentais,
a Palavra de Deus, sobretudo a Palavra inspirada da Escritura,
continuamente proclamada pela Igreja, tem dinamismo sacramental.
É um meio humano através do qual podemos
escutar a Palavra do Deus vivo. É maravilhosa a
intimidade que se gera entre nós e Deus quando
escutamos a Sua Palavra.
O inquérito feito à Diocese, preparatório
do próximo Sínodo dos Bispos, que terá
como tema “A Palavra de Deus na vida e na missão
da Igreja”, dá-nos indicadores preocupantes.
Embora muitos cristãos declarem ter a Bíblia
em casa, são poucos os que a lêem frequentemente;
na Liturgia a proclamação da Palavra é
uma parte do rito, e nem sempre tem a densidade de uma
escuta do Senhor. Porque a fé é uma adesão
confiante a Deus que Se nos revela, o não escutar
a Palavra viva de Deus compromete toda a autenticidade
cristã. A escuta da Palavra é a experiência
que torna possível tudo: a celebração
dos sacramentos, a fidelidade de viver segundo os mandamentos
de Deus, a busca da oração e da adoração,
a sinceridade do anúncio do Evangelho, a força
para viver profundamente em união com Jesus Cristo.
O Sínodo dos Bispos e o Ano Paulino convidam-nos
a cuidar desta escuta da Palavra. Que quem a proclama
na Liturgia procure primeiro escutá-la pessoalmente;
que os diversos itinerários de catequese sejam
conduzidos pela Palavra; que quem se prepara para os sacramentos,
o faça escutando a Palavra do Senhor. Ajudemos
os doentes a escutá-la, pois a doença é
uma circunstância em que o Senhor tem muito para
nos dizer, se nós aprendermos a escutá-l’O.
A Palavra é o princípio de uma intimidade
a construir, e prepara-nos para desejar a acção
de Deus em nós através dos sacramentos.
Os sacramentos da iniciação
cristã
12. Para sublinhar e promover esta dimensão sobrenatural
da vida cristã, a Igreja deve, na sua acção
pastoral, redescobrir o ritmo da iniciação
cristã e dos três sacramentos que a objectivam
como descoberta de Jesus Cristo: o Baptismo, a Confirmação,
a Eucaristia.
Chama-se iniciação cristã ao início
da vida da fé. É aquele “nascer de
novo” de que fala Jesus a Nicodemos (cf. Jo. 3,3).
É início, não apenas no sentido temporal
do termo, mas porque significa a tal mudança radical,
em que ao nosso desejo e disposição de vontade,
corresponde a acção de Deus em nós,
enriquecendo-nos com uma nova capacidade vital de viver
a nossa vida, seguindo e imitando Jesus Cristo. Nós
queremos, e Deus torna possível a realização
da nossa decisão, que Deus também quer,
porque a nossa vontade é fruto de uma vocação,
de um chamamento do Senhor. Esta nova capacidade sobrenatural
é-nos conferida pelos três sacramentos da
iniciação: no Baptismo, Deus identifica-nos
com o Seu Filho Jesus Cristo, numa união para a
vida e para a morte; na Confirmação, confere-nos
o Espírito Santo, experiência pessoal de
Jesus que encontrava no facto de Se saber amado por Deus
a força para a missão que o Pai Lhe confiou;
na Eucaristia, participamos no acto decisivo de Jesus
Cristo, a Sua morte e ressurreição e descobrimo-nos
membros da Igreja, Povo sacerdotal, que louva a Santíssima
Trindade em uníssono com Jesus Cristo, o verdadeiro
adorador de quem brota o louvor perfeito.
Toda a caminhada da iniciação cristã
é dinamizada pela fé. Esta é uma
atitude decisiva na vida cristã, e sendo atitude
humana, é dom de Deus. Se desejamos acreditar,
Deus dá-nos a força para acreditar, porque
nos atrai, nos ensina e nos ama. Os três sacramentos,
sem a fé, não fazem a iniciação
cristã, porque toda a acção de Deus
supõe a procura do homem.
13. Na nossa Diocese, é urgente redescobrir este
dinamismo da iniciação cristã. Muitos
dos nossos cristãos baptizados nunca percorreram
esse caminho que é início de uma vida nova.
Muitos nem sequer se confirmaram, não celebram
a Eucaristia e os actos religiosos que ainda procuram
têm outras motivações e não
o desejo de fidelidade a viver com Cristo, a vida nova
segundo o Espírito. A sua fé é expressão
de religiosidade, mas não é decisão
firme e apaixonada por Jesus Cristo. O verdadeiro encontro
pessoal com Jesus Cristo ressuscitado ainda não
se deu, de modo a mudar o rumo da sua vida, como aconteceu
a Saulo de Tarso na Estrada de Damasco.
Esta poderá a ser a grande revolução
da nossa Igreja diocesana: encontrar caminhos novos, inventivos
e, porventura, ousados, de anunciar Jesus Cristo aos que
nunca se encontraram com Ele e fazer com eles, com o ritmo
sugerido pelas suas vidas, essa caminhada fundamental
de enraizamento em Jesus Cristo e na Sua Igreja. Este
caminho pode concretizar-se em iniciativas pastorais já
em curso: catequese de adultos, catecumenado para os adultos
não baptizados, preparação séria
para os sacramentos, como a Confirmação
e o Matrimónio, os pais e padrinhos dos bebés
que vão baptizar-se, Movimentos que valorizam o
ritmo catecumenal na sua proposta de evangelização,
etc. Mas é possível inventar caminhos novos.
Em todos eles é preciso valorizar o anúncio
querigmático de Cristo, nosso Redentor, aquele
primeiro anúncio que desencadeira a opção
da fé e muda radicalmente a perspectiva da vida.
Muitas das crianças que frequentam as nossas catequeses,
a grande maioria dos jovens, muitos adultos que ainda
se apresentam como cristãos, precisam desse primeiro
anúncio, prévio à caminhada de iniciação
cristã. E este é, sobretudo, testemunhal,
feito por aqueles que encontraram o Senhor e decidiram
segui-l’O, fortalecidos com a graça de Deus
através dos sacramentos. Quanto menos forem os
cristãos verdadeiramente possuídos por Jesus
Cristo, menos serão os que O podem anunciar. Poucos
ou muitos, é preciso fortalecer neles o desejo
de anunciar, a tempo e a contratempo.
Na nossa Diocese estão já a ser preparados
alguns documentos que ajudarão a aprofundar os
caminhos da iniciação cristã. Desde
há muito pedidas, estão em preparação
as Normas Pastorais para a celebração dos
Sacramentos e Sacramentais. A primeira parte deste documento
sobre os sacramentos da iniciação cristã,
está pronta e dada a sua urgência, será
já publicada. Faz parte de um documento global
que, assim o esperamos, estará pronto durante o
próximo Ano Pastoral. É mais do que um resumo
das normas canónicas, claramente expressas no Código
de Direito Canónico e nos diversos Rituais. Pretende-se,
isso sim, aplicar essas Normas no contexto de uma criatividade
pastoral, na verdade teologal que elas supõem,
assumindo-as, não como preceitos frios, mas como
garantias da qualidade dinâmica de um processo de
crescimento da fé e da identificação
com Cristo.
O nosso Departamento da Evangelização tem
em preparação alguns instrumentos de trabalho,
na linha do aprofundamento dos caminhos da iniciação
cristã, particularmente o ritmo da caminhada catecumenal
dos adultos que se preparam para os sacramentos da iniciação
cristã.
A Liturgia como vivência
e expressão do mistério de Cristo
14. A Liturgia é sempre a celebração,
pela comunidade dos crentes, do mistério de Cristo
Redentor. Ela deve exprimir esse mistério e envolver
os participantes no seu carácter sagrado. O Santo
Padre Bento XVI, na Carta que dirigiu aos Bispos de todo
o mundo a propósito do Motu Próprio “Summorum
Pontificum Cura”, que define as condições
em que se poderá celebrar a Sagrada Liturgia pelo
Missal e Rituais anteriores à Reforma Litúrgica
do Concílio Vaticano II, aponta como motivação
para esse regressar aos antigos textos litúrgicos,
os cristãos sentirem neles mais afirmada a sacralidade
e o carácter transcendente do mistério que
se celebra, e considera que isto pode alertar-nos para
a maneira de celebrar a Liturgia segundo os actuais textos
oficiais, também eles capazes e preparados para
transmitir esse carácter sagrado dos sagrados mistérios.
Este é um desejo que não pode deixar de
nos interpelar e levar-nos a não abrandar o esforço
pela renovação da Liturgia. Identificamos
facilmente aqueles elementos que empobrecem algumas das
nossas celebrações, tornando-as demasiadamente
acção humana e ofuscando o carácter
de acção de Deus a favor do Seu Povo: má
proclamação da Palavra de Deus; demasiados
discursos durante a celebração, abundância
de palavra humana que ofusca a Palavra de Deus; isto inclui,
por vezes, a própria homilia, destinada a ajudar
a escutar a Palavra do Deus vivo e a descobrir os caminhos
de resposta, na fidelidade; má qualidade e a falta
de mensagem religiosa dos cânticos, que deveriam
ser uma expressão da oração e do
louvor; a ausência quase total de silêncios;
o exagero de gestos simbólicos de má qualidade,
como é o caso de certos ofertórios; a introdução
de textos profanos durante a própria acção
litúrgica. Que os sacerdotes tenham consciência
que aquele que preside à celebração
é o principal responsável da sua qualidade.
15. A Liturgia é a oração da comunidade
e, por isso mesmo, a principal escola de oração
pessoal. Um dos elementos que nos permite aferir da qualidade
da Liturgia que celebramos é verificar se ela é,
em si mesma, momento de oração comunitária
e se motiva os cristãos para a prática da
oração pessoal. Uma Igreja onde os cristãos
não rezam, não é a Igreja que Deus
quer e torna-se incapaz de ser sinal de esperança
no mundo de hoje. O Espírito fez surgir na Igreja
de hoje um conjunto de dinamismos e movimentos que têm
como carisma próprio a iniciação
á oração e a prática da oração.
É preciso garantir nessas pedagogias da oração
a relação fundamental entre a oração
pessoal e a oração litúrgica comunitária
e de ambas com a Palavra de Deus.
Das tradicionais formas de oração pessoal
a que melhor garante a relação entre a oração
pessoal e a oração litúrgica comunitária
é a adoração, sobretudo a adoração
do Santíssimo Sacramento. Forma sacramental da
presença real de Cristo vivo, ela prolonga a celebração
eucarística, onde o Senhor se tornou realmente
presente sob as espécies do pão e do vinho.
Adorá-l’O é expressão espontânea
da nossa fé na Sua presença real.
A adoração eucarística tem uma longa
tradição na piedade do povo português.
Ao ter caído em desuso ou diminuído em intensidade
não foi, certamente, um resultado positivo da Reforma
Litúrgica. Não hesitemos: a adoração
eucarística ensina as pessoas e as comunidades
a bem celebrarem a Eucaristia. É a forma de oração
onde a dimensão pessoal e comunitária se
cruzam espontaneamente.
A Igreja é o Povo de Deus
16. Esta foi uma das riquezas doutrinais do Concílio
Vaticano II: retomar a compreensão da Igreja da
época apostólica e dos primeiros séculos
como o “novo Povo de Deus”, povo escolhido
e adquirido por alto preço, o sangue de Cristo.
Este Povo participa de todas as dimensões da missão
de Jesus Cristo: é um Povo de profetas, é
um Povo sacerdotal e participa da realeza de Jesus Cristo.
Todos os seus membros, leigos, religiosos e sacerdotes,
os “fiéis em Cristo”, estão
revestidos da mesma dignidade fundamental e partilham
a responsabilidade da missão. A Igreja, Povo de
Deus, é o verdadeiro sujeito da missão,
foi a ela que o Senhor enviou a anunciar o Evangelho a
toda a criatura.
Esta visão da Igreja, um pouco esquecida pelas
vicissitudes históricas da mesma Igreja, vem corrigir
um rosto demasiadamente clerical da Igreja, sobretudo
em termos de missão. Houve um longo período
em que a vitalidade da Igreja, da sua missão e
da sua estrutura interna, se ficou muito a dever ao serviço
dos sacerdotes, seculares e religiosos, o que acabou por
relativizar a participação dos outros membros
da Igreja na estrutura interna e na missão. Quem
via a Igreja de fora, sobretudo os seus inimigos, via
a Igreja como assunto de padres e de bispos. Ainda hoje
é frequente ver na linguagem da comunicação
social a identificação da Igreja com os
bispos e os padres. O anti-clericalismo foi também
uma reacção contra um rosto clerical da
Igreja.
É preciso reconhecer que, na sequência do
Concílio, muita coisa mudou. Hoje é preciso
andar distraído ou não conhecer a Igreja
para a identificar com o clero. A Acção
Católica e outros Movimentos laicais tornaram a
Igreja visível e activa no seio da sociedade através
dos seus membros leigos. E mesmo na missão interna
da Igreja os leigos ganharam uma preponderância
crescente: basta pensar na catequese, no ensino da religião
nas escolas, nas estruturas sociais de vivência
da caridade, nos movimentos de espiritualidade, na participação
activa na Liturgia. Será isso suficiente para construir
o modelo de Igreja protagonizado pelo Concílio?
É que não se trata apenas de os leigos fazerem
aquilo que faziam os sacerdotes e tantas vezes à
maneira deles. Trata-se de uma fisionomia nova do rosto
da Igreja, que supõe, disse Bento XVI aos Bispos
Portugueses, uma contínua mudança de mentalidade.
Neste aspecto há, também para a Igreja
de Lisboa, um caminho a percorrer. E se isso depende dos
sacerdotes na forma de exercerem o seu ministério
de pastores, depende também dos cristãos
leigos, na medida da sua capacidade, tomarem iniciativas
e levarem-nas por diante, em comunhão com toda
a Igreja, a que preside o Bispo diocesano, unido aos seus
presbíteros. Enquanto os leigos só fizerem
aquilo que os sacerdotes mandam e nada fizerem sem o Senhor
Prior dizer como é, pouco se avança na desclericalização
da Igreja. Penso no vasto campo da presença da
Igreja no seio das realidades terrestres, da interpretação
e busca de sentido dessas realidades, campo próprio
das iniciativas apostólicas dos leigos. Mas também
na estrutura interna da Igreja e na criatividade da sua
missão é preciso continuar a valorizar o
carisma laical, através da corresponsabilidade
e da construção da comunhão.
A comunhão deve ser o rosto
visível da Igreja
17. A Igreja concebida como um Povo, exige que a comunhão
seja o seu rosto visível. “Vede como eles
se amam” (Tertuliano, Apol. 39,9), deveria continuar
a ser a reacção de quem olha a Igreja de
fora, como o foi nos primeiros séculos. A comunhão
põe no centro o amor-caridade, exige uma primazia
absoluta da caridade. E a caridade não é,
nem natural, nem espontânea. É dom de Deus,
acção do Espírito Santo na Igreja
e no coração de cada cristão. Conhecemos
bem as expressões naturais do amor, fruto das capacidades
da natureza e conhecemos também as suas fragilidades
e precariedade. Só a vivência sobrenatural
da graça leva os cristãos a transformar
todo o amor em caridade e a amar aqueles que nenhuma força
humana nos levaria a amar: os nossos inimigos, os que
dizem mal de nós, os mais marginalizados da sociedade.
A Igreja só é a “casa da comunhão”,
porque é o “Templo do Espírito Santo”.
A caridade é o grande desafio para a vida interna
da Igreja. A sua primeira expressão é o
amor a Deus e ao Seu Filho Jesus Cristo, o que nos levará
a amar todos os homens como nossos irmãos. É
a caridade que nos leva a anunciar o amor, Evangelho da
vida, a respeitar as diferenças, a escutar os que
pensam de maneira diferente de nós, a perdoar os
que nos ofendem, a considerar os dons dos outros complementares
dos nossos próprios dons. Sem a caridade, a Igreja
torna-se um simples fenómeno de convivência
humana, com as fragilidades e limites de toda a convivência
humana.
Nesta vivência da caridade, a Igreja dará
prioridade aos mais pobres, aos mais frágeis da
sociedade. Desde a publicação do nosso Plano
de Acção Pastoral, há trinta anos,
que a Igreja de Lisboa elegeu como uma das suas opções
fundamentais a opção pelos pobres. Esta
opção não pode ser teórica,
exige que se conheça, em cada tempo, a realidade
da pobreza na nossa Diocese e que se vá ao seu
encontro, através das pessoas e das instituições.
Esse será o nosso título de glória:
fazer dos pobres o nosso tesouro.
A Igreja neste tempo
18. A Igreja vive e realiza a sua missão, não
numa situação ideal, mas num tempo concreto,
a sociedade actual, com as suas características
muito marcadas, como vimos, pela mutação
cultural. Embora a relação primordial da
Igreja seja com a sociedade, a quem é enviada,
ela não coincide com a sociedade. Esta é
plural, variada, aceitando cada vez mais dificilmente
qualquer primazia da Igreja, quer na afirmação
dos valores morais, quer mesmo na proposta da verdade.
A Igreja mestra da verdade, princípio que inspirou,
durante séculos, a relação da Igreja
com a sociedade, é cada vez menos aceite. O mais
claro e essencial do seu Magistério é facilmente
relegado para o nível da opinião. Duas atitudes
da Igreja são, hoje, melhor aceites: a generosidade
do serviço, sobretudo dos mais pobres, e a força
do testemunho.
Neste quadro, a Igreja não deve relacionar-se
com a sociedade em termos de poder. A sua autenticidade
cristã e a consciência viva da missão
são as atitudes que devem prevalecer na relação
da Igreja com a sociedade. A sua mensagem é de
esperança e de salvação, e a sua
vivência sincera do Evangelho e do amor fraterno
são forças humanizantes de toda a sociedade.
Hoje há uma fronteira de tensão entre a
Igreja e a sociedade na afirmação dos valores
morais, inspiradores da dignidade do homem e do sentido
último da existência humana. A sociedade
pressiona a Igreja para que adopte a sua dimensão
secular de valores, evolutiva e pouco sensível
à dimensão perene da vida humana. Esta tensão
faz-se sentir mesmo entre os cristãos. Os valores
da Igreja não são os da sociedade; são
inspirados no Evangelho e na dignidade do homem restaurada
em Jesus Cristo. É certo que os valores que a Igreja
defende não são apenas os valores religiosos,
mas também os valores universais humanos, a que
a vivência cristã acrescentará profundidade
e radicalidade. Quando a Igreja se bate pela defesa desses
valores, como, por exemplo, a dignidade inviolável
da pessoa humana, a defesa da vida, desde o seu início
até à morte natural, a defesa da estabilidade
da família, a Igreja não o faz por serem
valores estritamente religiosos, mas por serem valores
universais humanos profundamente radicados nas tradições
culturais da humanidade. Há um combate inevitável
na defesa desses valores e esse combate a Igreja trava-o
porque é um combate pelo futuro do homem.
Mas a força da Igreja é a vivência
coerente desses valores, a conversão é exigência
contínua, o anúncio do Evangelho e de toda
a doutrina cristã acerca do homem em sociedade
é desafio a aceitar continuamente. A Igreja não
exige que os poderes públicos protejam ou imponham
os seus valores específicos. Mas espera que esses
mesmos poderes defendam e promovam tais valores universais.
E nesse campo, frente a esses poderes, a Igreja tanto
pode ser força de colaboração como
voz de denúncia.
No nosso caso nunca podemos esquecer que os membros da
Igreja são parte significativa da sociedade, o
que faz com que os desvios desta signifiquem também
fragilidade da própria Igreja. Esta deve estar
atenta aos dinamismos positivos que surgem na sociedade
e reconhecer a convergência entre esses dinamismos
e a missão da Igreja. É o que significa
o desafio lançado pelo Concílio, de ler
continuamente “os sinais dos tempos” e de
identificar neles portas abertas ao Reino de Deus. Também
assim a Igreja realizará a sua missão na
sociedade, de a ir transformando pelo anúncio da
mensagem de Jesus Cristo.
A Igreja e o Estado
19. O Estado é uma estrutura ao serviço
da sociedade, mas também não se identifica
com ela. Qualquer tentativa de identificação
entre o Estado e a sociedade é génese de
poder ditatorial, anti-democrático. Cada um na
sua esfera específica, a Igreja e o Estado têm
em comum o estarem ao serviço da sociedade. Os
pontos de convergência e de possível colaboração
entre o Estado e a Igreja, procurando o bem-comum, são
de assumir positivamente pelo Estado e pela Igreja. Esse
é o espírito da Concordata recentemente
celebrada entre a Santa Sé e o Estado Português.
A sociedade portuguesa é uma sociedade democrática,
regida pela Constituição, que obriga toda
a sociedade e, por conseguinte, também a Igreja.
Esta respeita a Constituição, reconhece
que ela se aplica a todos os portugueses e respeita e
colabora com todos os órgãos do Estado legítimos,
isto é, constituídos segundo as normas constitucionais.
Lembro aos cristãos da Diocese de Lisboa que a
Igreja aceita as principais características de
que se reveste, hoje, o Estado democrático:
* A sua laicidade. Longe vão os tempos em que
o Estado português se afirmava como católico
e reconhecia no catolicismo a sua religião. A sociedade
é plural do ponto de vista religioso e, por isso,
o Estado não pode ter religião, respeita
todas, reconhece-lhe os seus direitos, e reconhece também
os que não têm religião. A laicidade
afirma-se, assim, como uma neutralidade em matéria
religiosa, neutralidade que exige também que a
não religião ou o laicismo não se
transformem em doutrina do Estado.
* A separação entre a Igreja e o Estado.
É uma exigência da laicidade e pôs
termos à mistura de esferas, frequente no estatuto
de Estado confessional. “Dai a César o que
é de César e a Deus o que é de Deus”,
ensinou Jesus (Mt. 22,21). As únicas áreas
de convergência, que não podem ser de confusão,
entre a acção da Igreja e do Estado, são
o serviço da sociedade e a busca do bem-comum.
Embora a Lei de 1911 fosse uma má Lei, a Igreja
aceita e respeita este estatuto de separação.
* A sua democraticidade. O Estado Português é
democrático. As regras da democracia participativa
repercutem-se no Estado, quer na sua composição,
quer na definição e exercício dos
seus poderes. A sociedade democrática, na qual
a Igreja se integra, é o sujeito supremo dessa
definição. No que aos órgãos
eleitos diz respeito, é a sociedade no seu todo,
na pluralidade da sua realidade, que os elege. Os católicos
devem assumir a responsabilidade cívica de participarem
conscientemente nessa eleição. O único
caminho democraticamente legítimo de a Igreja influir
nas estruturas do Estado é a participação
consciente dos membros da Igreja nos processos democráticos.
A Hierarquia respeita a pluralidade de opções
partidárias por parte dos católicos. Deve
entretanto ajudá-los a formar a sua consciência
cívica e a visão dos problemas da sociedade
em chave cristã. Também aqui o caminho da
Igreja é a evangelização, em ordem
a uma visão de todas as coisas iluminada pela fé.
A Hierarquia não deve intervir no processo democrático
com os métodos do confronto. Os católicos
sim, esses podem e devem fazê-lo.
20. A Constituição do nosso Estado democrático
garante à Igreja as condições fundamentais
para o exercício da sua missão:
* A liberdade de consciência, cujo âmbito
é mais vasto que a prática de uma religião
e que garante que nenhum cidadão pode ser violentado
na sua consciência, quer pelas leis, quer pela prática
processual da governação.
* A liberdade religiosa e de culto. No que à Igreja
Católica diz respeito, esta liberdade nunca esteve
em questão. Ela deve incluir, e isso está
explicitamente expresso na Concordata, a liberdade de
exercer a sua missão, que não se reduz ao
culto. Mas a natureza da missão da Igreja na sociedade
é a Igreja que a define e não o Estado.
Neste aspecto podem surgir divergências, pois há
quem considere intervenção política
da Igreja ou exigência de privilégios, o
que na nossa óptica é apenas exercício
da missão da Igreja e que, segundo o Concílio,
pode incluir, em certos casos, a denúncia da forma
como o poder político é exercido.
Todos os “dossiers” presentemente em análise
no diálogo da Hierarquia com o Governo Português,
dizem exactamente respeito às condições
dadas à Igreja para o exercício da sua missão:
é o caso das capelanias, hospitalares e prisionais,
nas forças armadas e de segurança, o ensino
da religião nas escolas públicas, a escola
católica.
Neste diálogo, a Igreja não reivindica
privilégios, mas reconhecimento da sua missão
e espaço de liberdade. Temos consciência
de que em democracia os valores fundamentais são
a competência, a disposição para servir
e o diálogo. Este deve ser persistente, competente,
aberto às razões dos interlocutores. É
o espaço da insistência e da persuasão.
A Hierarquia católica não segue normalmente
o caminho de pressionar o Estado na praça pública,
embora esse seja um meio utilizado em democracia por outras
forças sociais.
O quadro legal das relações
da Igreja com o Estado
21. Além da Constituição, o principal
instrumento legal é a Concordata celebrada entre
o Estado Português e a Santa Sé. Para as
outras confissões religiosas existe a Lei da Liberdade
Religiosa. Tem-se verificado ultimamente, a tendência
de reger à base desta Lei as relações
da Igreja Católica com o Estado. Assim seria se
não houvesse Concordata. E esta foi tão
querida pelo Estado como pela Igreja. Instituto legal
de grande tradição na História de
Portugal, praticamente desde o início da nacionalidade,
decorre das relações bilaterais entre o
Estado Português e a Santa Sé tendo, por
isso, o estatuto de Tratado Internacional, reconhece a
internacionalidade da Igreja Católica e tem em
consideração a presença particularmente
significativa da Igreja Católica em Portugal, quer
pelo número de fiéis, quer pela quantidade
de serviços que a Igreja presta à sociedade.
É por isso que a actual Concordata consagra o princípio
da cooperação entre a Igreja e o Estado,
ao serviço da sociedade, e que preside a todo o
articulado do documento.
A Concordata de 2004, tal como já tinha acontecido
com a de 1940, precisa de legislação complementar
da competência da Assembleia da República
ou do Governo, através de Decretos-Lei, processo
agora em curso e que deve respeitar o espírito
inspirador de toda a Concordata. Enquanto esses novos
diplomas não entrarem em vigor, a actual legislação
aplicativa da Concordata de 1940, nos assuntos que permanecerem
na presente Concordata, continua válida. Isso decorre
de um princípio legal, segundo o qual as leis só
cessam quando são explicitamente revogadas por
quem de direito ou substituídas por outras que
as revogam. Este princípio foi explicitado e aceite
como garantia, pela Comissão negocial e pelo Governo
de então. Não há vazio legal nem
espaço para as ambiguidades que têm surgido,
aqui e acolá, nas diversas estruturas do Estado.
O desafio da santidade
22. Neste tempo e em todos os tempos, o grande desafio
posto à Igreja é o da santidade e esta tem
na identificação com Cristo, o grande Servo
e nosso Bom Pastor, o seu princípio. A Igreja é
Santa porque participa da santidade de Jesus Cristo. Torná-l’O
presente, proclamar a Sua Palavra, deixar-se conduzir
por Ele, fazer com Ele a caminhada da vida, manifestar
em nós o Seu poder de salvar e de transformar,
eis o desafio da Igreja. Jesus Cristo é a verdade
da Igreja, a sua força e a sua promessa.
Lisboa, 18 de Maio de 2008, Solenidade da Santíssima
Trindade, Dia da Igreja Diocesana
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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