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"Quem dizem os homens que Eu sou"
1. Com a Sua entrada triunfal em Jerusalém, de
que a Liturgia faz hoje memória, Jesus quer afirmar
claramente a Sua identidade messiânica, perante
os discípulos, perante a multidão que tantas
vezes O tinha seguido, perante as autoridades religiosas,
que O vão julgar e condenar. No Seu momento decisivo,
a Sua hora, era importante que todos tomassem uma posição
acerca da Sua identidade messiânica; era importante
que ficasse claro que Ele ia ser julgado e condenado porque
se considerava o Messias. Essa vai ser a questão
central do Seu julgamento: “Disse-Lhe o Sumo Sacerdote:
intimo-Te pelo Deus vivo que nos declares, sob juramento,
se Tu és o Messias, o Filho de Deus” (Mt.
26,63).
Foi também esta a questão que Jesus tinha
posto aos doze, em Cesareia de Filipe: “Quem dizem
os homens que é o Filho do Homem?” “E
vós quem dizeis que Eu sou?” A resposta de
Pedro, “Tu és o Messias, o Filho do Deus
vivo” (cf. Mt. 16,13-16) tinha-se tornado interrogação
para a multidão, era rejeitada pelas autoridades,
porventura não tinha anulado todas as dúvidas
e hesitações no coração dos
próprios discípulos. “Quando Jesus
entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço.
Quem é Ele? perguntavam” (Mt. 21,11).
Para a Igreja, em cada ano que celebra a Páscoa,
é importante confrontar-se com esta questão:
quem é Jesus Cristo? É que a Páscoa
encerra a nossa verdade mais profunda, de quem somos,
o que é a nossa vida, de que é que precisamos
para ser libertos, qual é o sentido radical da
nossa existência. Jesus Cristo é ou não
decisivo para a resolução definitiva da
nossa vida, da vida dos homens de todos os tempos? Tal
como Jesus, com a Sua entrada em Jerusalém, quis
provocar a cidade a tomar uma posição a
Seu respeito, e este é o enquadramento do drama
da Paixão, para tudo recomeçar na surpresa
da ressurreição, assim a Igreja, com esta
Liturgia do Domingo da Paixão, nos interpela a
tomar uma posição clara e actual, neste
momento da nossa vida, sobre a questão: quem é
para mim Jesus Cristo? Essa resposta acompanhará
e influenciará o modo como vamos percorrer com
o Senhor, em Igreja, a memória da Paixão
e da Ressurreição.
2. Jesus provoca os habitantes de Jerusalém a tomarem
posição sobre a Sua qualidade messiânica
e a compreenderem que as profecias e a promessa se tinham
cumprido n’Ele. Mas que Messias? Sabemos que no
tempo de Jesus havia no povo israelita três tradições,
três modos de conceber o Messias esperado, cada
uma delas sugerindo os sinais que levariam a identificá-l’O,
quando ele viesse: o messianismo real, segundo o qual
o Messias, descendente de David, seria o Rei de Israel,
Rei poderoso e justo, que libertaria o Povo dos seus opressores
e o conduziria à verdadeira terra prometida; o
messianismo escatológico, acentuado durante o cativeiro
em Babilónia, em que o Messias seria uma figura
misteriosa, vinda directamente do Céu, aparecendo
sobre as nuvens como um “Filho do Homem”,
reuniria o “resto fiel de Israel”, e inauguraria
o tempo definitivo. Esta visão do Messias como
um “Filho do Homem” celeste, misturava-se
com a visão daqueles que identificavam a vinda
do Messias com o regresso de um grande profeta, sobretudo
Elias, ou simplesmente o Profeta, prometido por Deus a
Moisés. E, finalmente, havia uma terceira tradição,
um messianismo de mediação, segundo a qual
o Messias assumiria a missão de servo, carregando
sobre os ombros os pecados de todo o Povo e oferecendo-se
em sacrifício por todos eles. É sobretudo
o Profeta Isaías, com uma visão teológica
mais profunda do que devia ser a restauração
de Israel, quem traça e anuncia a fisionomia do
Messias Servo, sofredor e redentor.
Na realidade das correntes teológicas e espirituais
existentes em Israel, estas três visões do
Messias excluíam-se mutuamente. Mas Jesus em todo
o Seu ensinamento e, de uma maneira muito clara, nesta
semana decisiva, quis mostrar que n’Ele se cruzavam
e realizavam as três dimensões messiânicas:
Ele é o Rei de Israel, prometido a David e à
sua descendência; Ele é o “Filho do
Homem Celeste”, vindo de junto de Deus, enviado
pelo Pai; Ele é o Servo sofredor, que não
veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida
como resgate da multidão (cf. Mc. 10,45). A junção,
na Sua missão messiânica, destas três
tradições, abre-nos para o verdadeiro sentido
da promessa de um Messias salvador. Define a Sua realeza:
“o Meu reino não é deste mundo”;
a afirmação paradoxal do Seu triunfo é
a Cruz, expressão dramática do amor de Deus
pelos homens; a Sua glória não é
aquela que se exprime nas honras do mundo, mas a que tem
como Filho de Deus, que O enviou do Céu, fazendo-Se
homem por nosso amor. Sempre que o messianismo davídico
se pode reduzir a uma missão temporal e confundir-se
com as honras deste mundo, Jesus rejeita-o. Prefere chamar-se
a Si o “Filho do Homem”, que Lhe lembra a
Sua origem no coração de Deus, e a plenitude
da vida em Deus, que Ele quer comunicar aos que acreditaram
n’Ele. Esta maneira de Jesus conceber a Sua missão
messiânica fica clara na resposta que dá
ao Sumo Sacerdote sobre a questão central: diz-me
se Tu és o Messias. “É como disseste.
Aliás, Eu vo-lo digo, vereis doravante o Filho
do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vir
sobre as nuvens do Céu” (Mt. 26,64). Ou seja,
Eu sou o Messias esperado, em todas as compreensões
acerca d’Ele, que as tradições do
nosso Povo nos legaram.
3. Mas a questão que a Liturgia apresenta à
Igreja, ao iniciar a celebração anual da
Páscoa, é mais vasta e exigente, e não
podia ser posta assim à população
de Jerusalém. A questão crucial é
esta: acreditas que Cristo ressuscitou dos mortos, e que
na Sua ressurreição tudo começou
de novo? Acreditar em Jesus Cristo não é
escolher uma das três interpretações
messiânicas; é acreditar na Sua ressurreição
e na transformação radical da nossa vida
em Cristo ressuscitado. Há uma diferença
em relação ao tempo dos acontecimentos bíblicos
de que fazemos memória: porque se declarou o Messias,
foi o próprio Jesus que foi julgado e condenado;
ao declará-l’O vivo, porque ressuscitou dos
mortos, somos nós que seremos julgados e muitos
foram condenados. A coerência do testemunho à
verdade, manifestada por Jesus, prolonga-se na coerência
da fé da Igreja e na coragem da sua fidelidade.
É esta a questão central que nos vai acompanhar
durante toda a celebração pascal: acreditas
que Cristo está vivo, porque ressuscitou dos mortos?
A pergunta vai ser-nos explicitamente colocada na Vigília
Pascal; será vida nova experimentada, na coerência
da fé e na beleza do amor, em Quinta-Feira Santa;
será questão silenciosa a rasgar o nosso
coração, na meditação da Paixão
do Senhor.
Não significa relativizar na resposta a esta pergunta
crucial que nos é posta em cada Páscoa,
as tradições messiânicas do Antigo
Testamento. Trata-se, sim, de tomar consciência
de que o Salvador prometido é Jesus Cristo, morto
e ressuscitado; que a Sua realeza é o triunfo do
amor de Deus e da Sua vontade; que a Sua glória
é a comunhão trinitária que quer
partilhar connosco; que o Seu nome é “Senhor”.
Trata-se de exultar, porque Ele nos reconduziu à
vida e que ser Povo de Deus, é identificar-se com
Ele, ser o seu Corpo; que implantar o reino messiânico
é segui-l’O como discípulos, e partilhar
da Sua própria vida. Que o único triunfo
que com Ele queremos partilhar é o triunfo sobre
o pecado, em todas as suas expressões; é
o triunfo da vida e do amor.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca.
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